Ele observava e aprendia. Quando viu Pike, um dos novos cachorros, um ladrão e mentiroso metido a sabido, roubar sorrateiramente uma fatia de seu bacon, no momento exato em que Perrault se encontrava virado de costas, imitou-o, no dia seguinte, conseguindo surrupiar do outro um belo naco de sua refeição. Armou-se um grande tumulto, mas Buck era considerado fora de suspeita, enquanto Dub, um desajeitado estúpido que era sempre pego roubando, foi castigado no seu lugar.
Esse primeiro furto que praticou ajustou-o de forma marcante à necessidade de sobreviver no meio hostil que encontrou nas terras do Norte. Se fosse incapaz de adaptar-se às mudanças, teria uma morte rápida e terrível. De fato, isso significava a quebra ou mesmo o desaparecimento de sua natureza moral, algo inútil e uma grave desvantagem na duríssima luta pela vida. No Norte, debaixo da lei do porrete e do dente, Buck pressentiu que, se não se tornasse tão selvagem quanto o meio que o cercava, seria sua condenação.
Não que tentasse pôr essas reflexões à prova. Ele estava adaptado, e isso era o que importava. Inconscientemente, acomodou-se ao novo modo de vida. A qualquer hora, não importando em que condições, não fugiria mais de uma luta. O porrete do homem do agasalho vermelho abriu nele, além de feridas, a possibilidade de recuperar um código fundamental e primitivo.
Sua evolução, ou regressão, física era rápida. Seus músculos tornaram-se rijos como ferro, e desenvolveu resistência a todas as dores mais comuns. Adquiriu uma nova ordem orgânica e psicológica. Podia ingerir qualquer coisa, não importava que fosse repugnante ou mesmo indigesta, que os sucos de seu estômago extrairiam do alimento a mais ínfima partícula nutriente e seu sangue a carregaria para os locais mais extremos do corpo, transformando-a em tecidos duros e resistentes. A visão e o olfato tornaram-se extraordinariamente sensíveis, enquanto sua audição se desenvolvia de tal modo que, mesmo dormindo, era capaz de escutar os sons mais débeis e discernir se significavam ou não perigo. Aprendeu a quebrar com os dentes o gelo que se acumulava entre seus dedos. Quando estava com sede e havia uma espessa camada de gelo sobre a água, partia-a empinando-se e atingindo-a vigorosamente com as patas. Sua habilidade mais extraordinária era pressentir mudanças no vento com uma noite de antecedência. Mesmo com o ar parado, cavava seu ninho junto a um barranco ou a uma árvore, de maneira que o vento, quando chegava, sempre o encontrava protegido.
Não era apenas a experiência que lhe trazia lições. Instintos mortos há muito renasciam. Várias gerações de antepassados domesticados despregaram-se dele. Aos poucos, ia começando a recordar-se, muito para trás no tempo, da juventude de sua raça, quando os cães selvagens reunidos em matilhas percorriam as florestas primitivas, perseguiam e matavam presas em meio à desesperada tentativa de fuga.
Não constituía problema para ele aprender a lutar utilizando as garras, o golpe cortante e rápido das mandíbulas, a mordida indefensável do lobo. Dessa mesma maneira haviam lutado seus ancestrais esquecidos. Na quietude das noites frias, quando mirava uma estrela com seu focinho e soltava um longo uivo de lobo, eram os seus ancestrais, já mortos e transformados em poeira, que uivavam por intermédio dele, atravessando séculos de distância. A cadência do uivo deles era sua agora, falava do seu infortúnio e sobre o que significavam para ele o silêncio, o frio e a escuridão. Assim, como sinal de que a vida é coisa pequena e vulnerável, a antiga canção retornou por intermédio dele e possuiu-o completamente. E tudo isso porque os homens haviam encontrado o metal amarelo nas terras do Norte, e por culpa de Manuel, o ajudante de jardineiro, cujo salário não bastava para atender às necessidades de sua mulher e das criaturas, pequenas cópias dele próprio, que pusera no mundo.

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O Chamado Selvagem
ClassicsUma história que se passa no Alasca em uma época febril, onde homens e cachorros travam uma intensa luta entre a vida e a morte, à procura incessante por ouro. "O leitor se transforma num explorador, a ficção passa a ser uma descoberta emocionante."