Chapter 15

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Numa manhã, em Pelly, enquanto os cães estavam sendo atrelados, Dolly, que nunca se irritava com nada, subitamente anunciou uma mudança em seu humor com um longo uivo de lobo, capaz de gelar o coração e típico dos cães quando estão apavorados. Então, investiu contra Buck. Ele nunca vira um cão enlouquecer, nem tinha razão nenhuma para já temer a loucura. Mesmo assim adivinhou que ali estava o grande horror e fugiu em pânico. Saiu em disparada, com Dolly ofegante e espumando em seu encalço, apenas um salto atrás dele. Buck estava tão assustado que ela nunca poderia alcançá-lo; mas também ele não poderia escapar dela, tão poderosa era sua demência. Ele mergulhou no coração da floresta da ilha, embrenhou-se pelos baixios, na outra ponta, atravessou um canal de gelo áspero para a ilha seguinte e alcançou uma terceira, retornando ao rio principal. Em desespero, já ia cruzá-lo, escutando Dolly rosnar. Mesmo sem olhar para trás, sabia que ela se mantinha próxima dele.
Foi então que ouviu François chamando-o, a meio quilômetro de distância, e fez uma curva voltando, apenas um pouco à frente de Dolly. Ele estava arfando dolorosamente. Sua última esperança era que o condutor de cães o salvasse. François ergueu o machado em sua mão. Buck passou por ele como um relâmpago, e o golpe esmagou a cabeça de Dolly.
Cambaleando, Buck chegou junto do trenó. Estava exausto, ofegante e sem forças. Era a oportunidade que Spitz aguardava. Lançou-se sobre Buck e por duas vezes cravou seus dentes até os ossos sobre o inimigo indefeso. Mas o chicote de François chegou em sua defesa, e Buck teve a satisfação de assistir a Spitz levar a pior surra que há fora dada em qualquer animal da equipe.

-Que diable, Ce Spitz! -reclamou Perrault.
-Algum dia vai matar Buck!

-Só que Buck vale por dois diables!  -sorriu François.
-Um beau dia, ele é que vai se enfurecer como um possesso e vai partir pra cima de Spitz. Ele vai mastigar esse Spitz e cuspir o resto dele sur la neve! Asseguro a você! Sei o que estou falando!
Desse dia em diante, a guerra entre os dois cães estava declarada. Buck se estranhava. De todos os cães que conhecera em seu antigo lar, nenhum aguentaria aquelas trilhas. Eram frágeis demais. A maioria dos que foram trazidos de lá, como Buck, morria no serviço, não aguentava nem a fome nem o frio. Buck era uma exceção. Enrijecera-se e aprendera muito. Agora, era tão forte, feroz e esperto quanto um husky. Isso fazia dele um líder mais perigoso ainda, já que o porrete do homem de agasalho vermelho arrancara de dentro dele toda a imprudência, toda a pressa. Buck queria triunfar, mas era esperto o bastante para esperar pela sua hora com uma paciência simplesmente primitiva.
Inevitavelmente, um dia ocorreria a disputa pela liderança. Buck a dejesava. E a desejava porque era dominado por um orgulho sem nome, incompreensível, típico de quem percorre as trilhas -aquela paixão que prende os cães ao trenó até seu último suspiro, que os faz morrerem felizes, com os arreios assentados neles. Era o orgulho de Dave e de Sol-leks, enquanto puxavam, empregando todas as suas energias. O orgulho é que os impelia, transformando-os em criaturas poderosas, cheias de dignidade. Era o mesmo orgulho que os atiçava como esporas, durante o dia, e que à noite, os derrubava intranquilos, inconformados. Que levava Spitz a surrar os cães que executavam sua tarefa de maneira desleixada ou que se escondiam na hora de pôr os arreios, pela manhã. E, sem dúvida, esse mesmo orgulho o levava a temer Buck, como um rival, o que por sua vez, dava a Buck motivos para se orgulhar de si mesmo.

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