Chapter 17

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Na embocadura do Tahkeena, certa noite, depois do jantar, Dub disparou atrás de um coelho e o perdeu. Num segundo, a equipe inteira estava ganindo. A menos de cem metros de distância ficava o acampamento da Polícia do Noroeste, com cinquenta cachorros, todos huskies, que se juntaram à caçada. O coelho fugiu em direção ao rio, mas entrou por um pequeno riacho coberto por uma superfície de gelo que parecia firme. Ele corria ligeiro pela neve, escapando dos cachorros que se esforçavam por apanhá-lo, acompanhando cada curva que ele descrevia, sem conseguir alcançá-lo. Eram sessenta cães fortes, liderados por Buck. Em meio à corrida, ele latia, orgulhoso de si e de seu corpo esplêndido, que se destacava dos outros, sob a luz do luar. Mas o coelho continuava saltando à sua frente, como se fosse um fantasma das neves. Buck seguia à cabeça da matilha, perseguindo aquele pequeno animal selvagem, a carne viva, para matá-lo com seus próprios dentes e lavar o focinho até os olhos em sangue morno.
Há um êxtase que marca o início da vida, o qual não se pode ultrapassar. Esse é o paradoxo de estar vivo. O êxtase acontece quando se está mais acentuadamente vivo e, ao mesmo tempo, quando esquecemos que estamos vivos. Esse êxtase, esse abandono diante da vida apanha o artista acima e fora de si próprio como se fosse um relâmpago; abate-se sobre o soldado, enlouquecido pela batalha, levando-o pânico e a recusar-se a retornar ao quartel. E possuiu Buck, que liderava a matilha, escutando o antigo uivo do lobo, perseguindo seu alimento ainda vivo e saltitante diante dele, à luz do luar. Tudo aquilo ressoou nas profundezas de seus instintos, revolvendo elementos absolutamente fora do seu controle, como se renascessem do túmulo do tempo. Ele estava dominado pelo estigma do surgimento da vida, pela origem do seu próprio ser, pelo desfrutar do movimento livre de cada um de seus músculos, que agiam, todos eles, em conjunto. E isso o ligava a tudo o que pulsava à sua volta, preenchendo-o de um alvoroço feroz, que se expressava através do seu corpo, voando exultante abaixo das estrelas, desafiando tudo o que estivesse imóvel.
Spitz era frio e calculista, mesmo em estado de extremo mau humor. Afastou-se da matilha e cortou caminho atravessando uma estreita nesga de terra, onde o riacho fazia uma longa curva. Buck ignorava esse atalho e, contornando o riacho, além do aspectro branco do coelho que ainda corria à sua frente, avistou outro, bem maior, saltar de um barranco logo acima e cair num ponto exato por onde o animalzinho seria obrigado a passar. Era Spitz. E o coelho não podia voltar atrás. Quando os dentes brancos quebraram-lhe as costas ao meio, ele emitiu um grito agudo e tão alto quanto o de qualquer ser humano sendo atacado. Ao escutar esse grito, que era o próprio e vertiginoso mergulho da vida nas garras da morte, toda a matilha deteve-se, comemorando com um coro infernal de alegria.
Somente Buck não uivou. Emendando a corrida num salto feroz, chocou-se ombro a ombro com Spitz, e isso o fez deixar escapar a garganta do seu inimigo. Eles rolaram pelo chão coberto de neve. Spitz reequilibrou-se rapidamente, como se não tivesse sido atingido. Rasgou o ombro de Buck com seus dentes e recuou, agilmente. Por duas vezes suas mandíbulas se fecharam,  como se fosse as garras de aço de uma armadilha, enquanto ele dava alguns passos para trás, procurando melhor equilíbrio, com os lábios sempre contorcidos, deixando os dentes à mostra.
No mesmo instante, Buck compreendeu que havia chegado a hora. Enquanto se estudavam, rosnando sempre e com as orelhas voltadas para trás, os olhares vasculhavam um ao outro tenazmente, procurando encontrar uma maneira de tomar vantagem. A cena pareceu de alguma maneira familiar a Buck. Era como se pudesse lembrar-se de tudo -o coelho servira para despertar-lhes o apetite. Aqueles cães haviam se tornado lobos novamente, e como tal, dispuseram-se num círculo mortal ao redor dos combatentes.
Para Buck nada ali era novo nem estranho. Era o que sempre foi, a ordem natural das coisas. Mas Spitz era um lutador experiente. De Spitzbergen, através do Ártico, Canadá e Barrens, lidara com todo tipo de cães e conseguira sempre impor sua liderança sobre eles. Sua arma era a fúria amarga, porém nunca cega. Tinha paixão por despedaçar e destruir, nunca se esquecendo de que seu inimigo estava imbuído de igual paixão e dos mesmos objetivos. Ele nunca antecipava sua investida, nunca atacava sem já estar preparado para defender-se.
Em vão, Buck tentou cravar seus dentes na garganta do grande cão branco. Mas toda vez que suas presas procuravam a carne macia, entrechocavam-se com as presas de Spitz. Mandíbula contra mandíbula. Os lábios sangravam feridos, e Buck não conseguia penetrar na guarda do seu inimigo. Então, enraivecia-se e o envolvia num redemoinho de investidas. Por inúmeras vezes, tentou atingir a garganta cor de neve, onde a vida borbulhava à flor da pele, e sempre Spitz conseguia escapar, num relance. Buck tornava-se cada vez mais imprudente. Curvava a cabeça para trás e avançava com o ombro, tentando atingir o ombro de Spitz e derrubá-lo, mas em vez disso, só conseguia mais rasgões por sobre seu corpo, enquanto Spitz feria e recuava, sempre rapidamente, sem ser tocado.
Buck ofegava e sangrava bastante. A luta ficava cada vez mais desesperada. Durante todo o tempo, o círculo silencioso, à semelhança dos lobos, aguardava o desfecho, sem se importar com que cão tombaria. Vendo Buck quase derrotado, Spitz assumiu a iniciativa, mantendo-o desequilibrado. Buck tropeçou, e o círculo de sessenta cães acercou-se, mas ainda no ar, ele conseguiu recuperar-se, e o círculo voltou atrás, aguardando.
Buck possuía uma qualidade reservada para os grandes -imaginação. Ele lutava Instintivamente, mas podia muito bem lutar com a cabeça, se necessário. Avançou outra vez, fingindo tentar o velho golpe do ombro contra ombro, mas no último instante mergulhou por baixo, deslizando na neve, e seus dentes se fecharam sobre a pata esquerda de Spitz. Escutou-se o ruído da trituração de um osso que se partira, e o cão branco agora o enfrentava com três patas apenas. Por três vezes, Spitz tentou abatê-lo, então Buck repetiu seu truque, agora quebrando-lhe a pata direita. Apesar da dor e da impossibilidade de continuar lutando, Spitz tentava permanecer de pé, de qualquer jeito. Via o círculo silencioso, com os olhos brilhantes e as línguas pendentes, fechar-se sobre ele, como vira a mesma cena acontecer com antagonistas que derrotara no passado. Só que ele era a vítima, dessa vez.
Não havia mais esperança para ele. Buck era implacável. Piedade era uma coisa reservada para ambientes gentis. Buck preparou a investida final. O círculo apertava-se, e ele podia escutar a respiração pesada dos huskies sobre seu dorso. Podia vê-los, por cima de Spitz e pelos lados, com olhos fixos neles.
Fez-se uma pausa. Os animais ficaram imóveis, como se tivessem se tornado pedra. Apenas Spitz tremia, com o pêlo eriçado, cambaleando e rosnando de um jeito horrível, tentando impedir sua morte iminente com ameaças. Então, Buck avançou e recuou rapidamente e aproveitou seu rápido movimento para bater com seu ombro no de Spitz. Foi o bastante para causar a queda de seu inimigo. O círculo negro compactou-se, sob o luar refletido na neve, e Spitz desapareceu no meio dele. Buck ficou de pé, observando. Era o vitorioso. A fera primitiva havia tomado conta dele completamente e fizera sua primeira vítima, dando a Buck enorme prazer.

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