Chapter 26

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Buck fora treinado na lei do porrete e do dente. Nunca abriria mão de uma vantagem ou fugiria de um inimigo contra quem tivesse iniciado um combate mortal. Aprendera isso com Spitz  e com os cães que gostavam de briga na mala postal. Sabia que não havia meios- termos. Devia mandar ou ser mandado. Piedade era sinal de fraqueza. Piedade não existe no reino primitivo, era confundida com medo, e isso trazia a morte. Matar ou ser morto, comer ou ser comido, essa era a lei. E a esses mandamentos, trazidos das profundezas perdidas dos tempos, ele obedecia.
Ele era na verdade mais velho do que os dias que já vira ou o ar que já respirara. Ligava o passado ao presente, e a eternidade pulsava através dele num ritmo poderoso que acompanhava como se fossem marés e estações do ano.
Buck sentou-se junto da fogueira de John Thornton - um cão de peito largo, dentes brancos e pêlo longo. Porém, por trás dele, estavam as sombras de várias espécies de cães-lobos, lobos selvagens, ansiosos, sempre prontos, saboreando a carne que comiam, bebendo a água para matar a sede, farejando o vento, escutando a floresta, e esses elementos ditavam seu estado de espírito, dirigiam seus atos, participavam de seus sonhos ou mesmo deles se tornavam a matéria-prima.
Essas sombras acenavam para ele de forma tão imperativa que, a cada dia, a humanidade e os seus clamores escapavam mais para longe. Das profundezas da floresta, ouvia um chamado. Quanto mais o ouvia, mais comovente e sedutor se tornava e ele sentia-se compelido a voltar as costas para o fogo e a explorar os arredores, a mergulhar na floresta mais e mais. Não sabia para onde o conduziria, nem por quê. Nem imaginava respostas; o chamado ia dominando-o - o chamado selvagem. No entanto, em todas as ocasiões em que o grito da terra virgem e o vulto das árvores pareciam que iam conquistá-lo, o amor por John Thornton trazia-o de volta para a beira do fogo.
Somente Thornton era capaz de segurá-lo. O resto da humanidade não lhe importava. Viajantes que passavam ao acaso podiam fazer-lhe por eles interiormente e, se algum homem se mostrava efusivo demais, ele se levantaria e se afastaria.
Quando os parceiros de Thornton, Hans e Pete, chegaram na tão esperada balsa,  Buck recusou-se a tomar conhecimento deles até compreender que eram amigos de seu dono. Depois disso, passou a tolerá-los, passivamente, aceitando favores deles, como se estivesse lhes prestando um favor em aceitá-los. Tinham o mesmo jeito grandalhão de Thornton, com os pés no chão, vendo tudo com clareza. E pouco depois de chegarem já haviam compreendido Buck e seu jeito de ser e não insistiram em ter com ele a mesma intimidade que tinham com Skeet e Nig.
Por Thornton, contudo, seu amor só fazia crescer. Somente ele, entre todos os homens do mundo, poderia colocar um pacote nas costas de Buck,  nas viagens de verão. Não havia nada que Buck considerasse demais,  quando era seu dono quem mandava fazer.
O acampamento havia ficado para trás. Thornton e seus amigos andavam discutindo que rumo dar à balsa. Acabaram decidindo deixar Dawson  pelo afluente do Tanana. Um dia, cães e homens encontravam-se sentados na beira de um penhasco que caía direto num leito rochoso, cem metros abaixo. Thornton estava reclinado sobre Buck, bem na borda do desfiladeiro, e um pensamento caprichoso atravessou sua cabeça. Então, pediu atenção de Hans e Pete para a experiência que tinha em mente.

-Salte, Buck!  -ordenou, estendendo seu braço em direção ao vazio.
E, no instante seguinte, estava agarrado a Buck, para detê-lo, os dois quase caindo na ribanceira, enquanto Hans e Pete se esforçavam para salvá-los, puxando os dois para trás.

-Que coisa estranha! -exclamou Pete, depois de passado o perigo e já tendo recuperado a fala.
Thornton sacudiu a cabeça:
-Não, é maravilhoso mas, ao mesmo tempo, é terrível também. Quer saber? Sinto medo, às vezes.

-Não queria estar na pele do homem que se atrever a pôr as mãos em você com ele por perto -sentenciou Pete, indicando Buck com um gesto.
-Puxa! Nem eu! -ajuntou Hans.

Foi em Circle City, no final daquele ano, que as apreensões de Pete se realizaram. "Black" Burton, um homem de gênio ruim, sempre maldoso, estava puxando briga com um imigrante, num bar, e Thornton tentou apaziguar os ânimos. Como de costume, Buck estava recostado a um canto, com a cabeça entre as patas, atento a cada movimento de seu dono. Sem ninguém esperar, Burton mandou um soco direto sobre Thornton, que rodopiando, foi lançado para trás. Teria caído ao chão, se não houvesse se agarrado ao balcão do bar.
As pessoas que assistiam à cena escutaram algo que não era um latido nem um ganido, mas alguma coisa que poderia ser bem descrita  como um uivo, e viram Buck projetar-se no ar, procurando a garganta de Burton com suas mandíbulas. Instintivamente, o homem levantou seus braços, salvando sua vida, mas não pôde evitar de ser derrubado, com o impacto do peso do animal. Os afiados dentes de Buck soltaram-se do braço do homem, ele ainda não havia desistido de abocanhar a garganta de Burton, e dessa vez sua presa não conseguiu bloquear a investida totalmente. Teve a garganta cortada. Então, a multidão partiu para cima de Buck, arrancando-o de cima de Burton. Enquanto um médico socorria o homem, estancando a hemorragia, Buck era contido a custo, fora do bar, por uma barreira de homens armados de porretes. Um conselho de mineiros reuniu-se e decidiu que Buck havia agido sob provocação, portanto não seria punido. Mas sua reputação já estava feita e espalhou-se por todos os acampamentos do Alasca.

No final do ano, ele salvaria a vida de John Thornton de outra maneira.

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