Chapter 10

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A noite trouxe para Buck o problema de onde dormir. A tenda, iluminada por uma vela, projetava uma aura de calor em meio à planície branca. Mas, quando ele entrou lá com toda a naturalidade, Perrault e François o bombardearam com pragas e utensílios culinários, até que ele, consternado com mais essa agressão, bateu em retirada para o frio lá de fora.
Um vento gelado estava soprando e mordiscava sua pele agudamente, incomodando especialmente o ombro ferido. Ele se deitou na neve e tentou dormir, porém o frio logo o fez tremer dos pés à cabeça. Sentindo-se miserável, inconsolável mesmo, vagou por entre as tendas, apenas para descobrir que cada lugar era mais frio do que o outro. Aqui e ali, foi atacado por cães selvagens. Mas ele aprendia depressa -eriçou os pêlos do pescoço e rosnou, e desistiram de molestá-lo.
Finalmente, teve uma ideia: decidiu retornar e verificar como seus companheiros estavam se arranjando. Para sua surpresa, todos haviam desaparecido. Sentiu - se totalmente abandonado. De súbito, a neve cedeu por debaixo dele, e Buck afundou. Alguma coisa remexeu-se sob suas patas. Ele recuou, eriçando os pêlos e rosnando, com medo do invisível. Mas um latido baixo e amistoso fez-se ouvir, restituindo-lhe a confiança. Buck voltou, começou a investigar, e um bafo de ar quente penetrou-lhe as narinas. Ali, confortavelmente embolado na neve, encontrou Billie. Gania, gentil como sempre, e fez um ou outro movimento que demonstrava boa vontade. A seguir, num verdadeiro suborno pela paz, lambeu o rosto de Billie, com sua língua quente e úmida.
Outra lição. Então, era assim que faziam, hem? Convictamente, Buck escolheu um lugar e, até mesmo com certo espalhafato e desperdício de esforço, pôs-se a cavar um buraco para si. Num instante, o calor do seu corpo preencheu o pequeno espaço, e ele caiu no sono. O dia havia sido longo e árduo. Buck dormiu profundo e confortavelmente, se bem que rosnando e latindo, vez por outra, brigando com seus pesadelos.
Só conseguiu reabrir os olhos quando escutou os ruídos do acampamento despertando. Não se deu conta de onde estava logo que acordou. Havia nevado a noite inteira, e ele havia sido soterrado pela neve. A massa gélida comprimia-lhe o corpo, fechando-se em torno dele. Buck começou a apavorar-se. Instintivamente, os músculos de todo o seu corpo contraíram-se, num espasmo, os pêlos de seu pescoço e de seus ombros eriçaram-se e, emitindo um rosnado feroz, emergiu em direção ao sol incandescente do dia, com neve caindo sobre ele como uma nuvem faiscante.
François emitiu um berro, saudando seu aparecimento:

-Veja, veja,Perrault... Ce Buck aprendeu depressa!
Perrault aprovou solenemente, com um movimento de cabeça. Como courier do governo canadense responsável pelo despacho de importantes mensagens, esforçava-se por adquirir os melhores cães e estava particularmente satisfeito com a compra de Buck.
Uma hora mais tarde, três outros huskies viriam reforçar a equipe, que agora se compunha de nove animais. Mais quinze minutos e todos os cães estavam atrelados, enfileirados, prontos para subir a trilha em direção a Dyea Canyon. Buck estava contente de partir e surpreendeu-se com a animação que tomou conta dos animais, inclusive dele mesmo. O que mais chamou sua atenção foi a mudança manifestada por Dave e Sol-leks. Ambos haviam se transformado em cães absolutamente diferentes, totalmente possuídos por seu trabalho. Toda a indiferença, a displicência haviam desaparecido. Estavam agora alertas e ativos, ansiosos por cumprir bem suas obrigações, e irritados ao extremo, quando algo os retardava ou prejudicava seu desempenho. O trabalho bem executado parecia ser a expressão máxima do que tinham de melhor, parecia ser tudo pelo que viviam, a única coisa capaz de lhes dar alguma satisfação.

O Chamado SelvagemOnde histórias criam vida. Descubra agora