Chapter 23

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No final da manhã seguinte, Buck conduzia a longa fileira de cães rua acima. Mas seu coração não estava no trabalho, nem o coração de qualquer outro dos cães. Os novatos eram tímidos e assustados. Os mais antigos não  tinham confiança nos condutores. Buck pressentiu que aqueles homens e a mulher não conheciam aquilo em que estavam se metendo e também que eram incapazes de aprender. Não possuíam senso de ordem nem de disciplina. Gastaram metade de uma noite para assentar um acampamento cheio de defeitos e metade da manhã para desmontá-lo e para carregar os trenós,  displicentemente. O resto do dia foi desperdiçado em paradas e mais paradas para rearrumar a carga e apertar as amarras. Havia dias em que faziam menos de vinte quilômetros. Noutros, não conseguiam sequer pôr-se em marcha. Em nenhum dia foram capazes de cobrir a metade da distância que haviam previsto no cálculo da ração para os cães.
Era inevitável que a ração para os animais começasse a faltar. Hal acordou certo dia para o fato de as reservas de ração estarem pela metade. E só haviam percorrido um quarto do caminho até onde poderiam reabastecer-se. Nem por amor nem por dinheiro poderiam conseguir comida adicional para os cães. Foi forçado a diminuir a ração para os animais e a alongar a jornada diária. A irmã e o cunhado apoiaram-no, mas estavam condenados pela própria incompetência. Também não era um simples caso de dar aos cães menos comida; era impossível fazê-los trabalhar mais, assim como eles próprios, eram incapazes de partir mais cedo pela manhã, o que os impedia de alongar o dia por mais algumas horas. Não apenas não sabiam como lidar com cães, como não haviam aprendido a melhorar o próprio desempenho.
O primeiro a sucumbir foi Dub. Pobre ladrão malsucedido, sempre apanhado e punido. Nem ao menos havia sido um trabalhador de confiança. Negligenciado, o ferimento em sua omoplata havia evoluído muito mal, até que Hal o matou com um tiro de seu Colt imponente. Existe um ditado que diz que um cão estranho ao meio morre de fome comendo a mesma coisa que um husky. Assim, os seis cães inadaptados não tinham salvação; morreriam inapelavelmente, forçados a comer apenas a metade do que comia um husky. Os newfoundlands se foram primeiro, seguidos pelos três pointers de pêlo curto. Os vira latas resistiram um pouco mais, no entanto acabaram do mesmo jeito.
Assim, aquelas pessoas deixaram de lado todas as gentilezas e amenidades do Sul. Privados do seu lado romântico e glamouroso, a viagem ao Ártico transformou-se numa realidade arrasadoramente adversa. Mercedes deixou de prantear os cães, passou a chorar por si mesma e a discutir asperamente com seu marido e com o irmão.
Discutir era uma coisa para qual sempre tinham muita disposição. A irritabilidade de cada um tinha origem no fato de se julgar mais digno de pena do que os outros dois. Era algo que crescia por si próprio, contra eles próprios. A maravilhosa paciência de gente da terra, acostumada ao trabalho duro e ao padecimento sem jamais perder a doçura e a polidez, era inacessível a esses três viajantes. Eles não possuíam  sequer a noção do que seria ter paciência. Eram inflexíveis, por causa de sua dor; os músculos lhes doíam, seus ossos doíam e o coração doía também. Isso os tornava agressivos, e eram sempre grosseiras as primeiras palavras que vinham aos seus lábios, pela manhã, e as últimas a selá - los, ao se recolherem. Começando por uma disputa sobre quem iria rachar a lenha para a fogueira, que só dizia respeito na prática a Charles e Hal, chegava-se a envolver a família inteira, pais, mães, tios, primos, pessoas a dois mil quilômetros de distância, alguns deles já mortos. As opiniões de Hal sobre a arte e a espécie de sociedade sobre a qual o irmão da mãe dele escreveu uma peça de teatro poderiam até ter alguma coisa a ver com quem iria rachar a lenha, quem sabe? Mas a discussão iria enveredar para os preconceitos políticos de Charles facilmente. Como a linguaruda da irmã de Charles pudesse ser um item relevante para acender- se uma fogueira no Yukon, entretanto, só Mercedes compreendia, já que era especialista em declinar copiosas acusações contra a família de seu marido, sempre fazendo retornarem à baila as peculiaridades mais desagradáveis sobre esse tópico. Enquanto isso, ninguém acendia a fogueira, o acampamento permanecia pessimamente organizado e os cães não eram alimentados.

Mercedes padecia de um agravo em particular - ela era uma mulher. Bela, frágil, foi tratada com galanteios por toda a sua vida. Mas a maneira como seu marido e seu irmão a andavam tratando, nos últimos dias, era tudo, menos galante. Ela estava acostumada a ser desamparada. Eles queixavam-se. Justificando-se pelo que considerava ser prerrogativa da sua condição feminina, estava tornando a vida deles insuportável. Perdera toda a consideração para com os cães e, porque andava triste e cansada, fazia questão de ser transportada no trenó o tempo inteiro. Ora, ela podia ser bela e frágil, mas pesava aproximadamente sessenta quilos, um sacrifício inútil a mais para os cachorros famintos e enfraquecidos. Ela não desceu do trenó até o dia em que os cães tombaram na trilha e o veículo deteve-se. Charles e Hal pediram para que ela descesse e seguisse a pé. Chegaram a implorar, suplicaram, enquanto ela importunava os céus desfiando toda a brutalidade que julgava estar sofrendo por parte deles.

O Chamado SelvagemOnde histórias criam vida. Descubra agora