Chapter 14

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Ao amanhecer, retornaram ao acampamento e encontraram seus donos de péssimo humor. Mais da metade dos suprimentos estava perdida. Foi tudo remexido e mastigado. Comeram até um par de mocassins feitos de couro de alce, que pertenciam a Perrault, pedaços dos arreios de couro do trenó e mesmo alguns centímetros da extremidade do chicote de François, o qual interrompeu a melancolia com que vinha contemplando os destroços para comentar:
-Ah, mes amis... -lamentou suavemente.
-E se essas mordidas todas fizeram vocês pegarem raiva? Meu Deus... E agora, Perrault? Todos virando chiens malucos, já pensou?
O courier balançou a cabeça apreensivo. Faltavam seiscentos quilômetros até Dawson, com os piores trechos da trilha ainda por percorrer, e ainda precisaria enfrentar o risco de ver a raiva dizimando seus cães.
O rio Thirty Mile corria livremente. Suas águas turbulentas desafiavam o frio, e o gelo conseguira apenas se fechar nos lugares mais tranquilos. A cada passo se arriscavam as vidas dos cães e dos homens. Perrault seguia na frente, com sua vara, averiguando o caminho pelo gelo. Uma dúzia de vezes a fina camada que parecia sólida rompeu-se, e ele afundou, salvando sua vida apenas por segurar-se na vara que conseguia atravessar por sobre o buraco aberto pelo seu corpo. Porém, com o termômetro marcando cinquenta graus abaixo de zero, sempre que isso acontecia, ficava enregelado e poderia até mesmo morrer, caso não acendesse rapidamente uma fogueira para secar suas vestimentas.
No entanto, nada o intimidava e por isso fora contratado como courier do governo. Seu pequeno rosto transpirava decisão, e ele trabalhava desde o amanhecer até o fim do dia, enfrentando toda espécie de riscos e o frio mais rigoroso. Era graças a ele que podiam evitar as margens mais perigosas, onde o gelo se rompia com extrema facilidade, permitindo às águas gélidas engolirem o que estivesse sobre ele.
Certa vez, o trenó afundou, com Dave e Buck. Quando foram resgatados, estavam quase congelados e por muito pouco não haviam se afogado. Foi necessário, como sempre, acender a fogueira para salvá-los. Seus corpos estavam cobertos por uma sólida crosta de gelo, e os homens os forçavam a se manterem correndo em torno do fogo, tão próximos, que seus pêlos ficaram chamuscados.
Dias mais tarde, o gelo quebrou à frente e por detrás do trenó. Não havia escapatória, a não ser pelo paredão rochoso que ladeava o leito do rio. Milagrosamente, Perrault conseguiu escalá-lo, enquanto François, lançando mão dos arreios, do seu chicote e de todas as correias disponíveis, confeccionou uma espécie de corda longa com a qual, içou os cães, um a um, até a borda da rocha. François foi o último a subir, depois do trenó e da carga. Então, começaram a procurar um lugar para a descida, o que fizeram com o auxílio da mesma corda. A noite os encontrou de novo no leito do rio, meio quilômetro à frente.
Quando atingiram Hootalinqua e o gelo mais resistente, Buck estava exausto e os outros cães, na mesma condição. Entretanto, para recuperar o tempo perdido, Perrault exigiu o máximo deles. Só que as patas de Buck ainda não eram tão fortes e resistentes quanto as dos huskies. Por todo o dia, ele claudicou, sofrendo terrivelmente, e assim que montaram o acampamento, deitou-se como se estivesse morto. Estava faminto, mas não se mexeu nem mesmo para receber a ração que François lhe destinou. O condutor de cães passou a massagear suas patas por meia hora, toda noite, depois do jantar, e cortou os canos de seus mocassins para fazer calçados para Buck. Isso lhe trouxe grande alívio. Buck conseguiu até mesmo arrancar um sorriso do carrancudo Perrault, certa manhã, quando François esqueceu de colocá-los e Buck deitou-se de costas, com suas patas agitando-se no ar apelativamente, recusando-se a se pôr a caminho sem seus sapatos. Mais tarde, suas patas se acostumaram aos rigores da trilha; endureceram-se, e os mocassins foram jogados fora.

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