Naquele inverno, em Dawson, Buck realizou outra proeza. Não tão heróica, talvez, mas o suficiente para colocar seu nome alguns ídolos acima, no totem da fama do Alasca. Para os três homens, essa proeza foi particularmente gratificante, já que andavam precisando do lucro que lhes rendeu, o qual lhes tornou possível empreender uma sonhada viagem às terras virgens do Leste, onde nenhum mineiro tinha penetrado. Tudo começou durante uma conversa no Eldorado Saloon, onde cada um contava vantagens a respeito do seu cão favorito. Buck já tinha um passado reconhecido, mas Thornton viu-se tentado a enaltecer ainda mais sua fama. Meia hora depois, um homem já bradava que seu cão era capaz de mover um trenó carregado com duzentos e cinquenta quilos. Outro apressou-se a afirmar que o seu poderia fazer o mesmo, com um trenó carregado com trezentos quilos, e um terceiro falou em trezentos e cinquenta.
-Sei, sei... -desdenhou John Thornton. -Só que o Buck pode mover um trenó com quinhentos quilos de carga.
-É mesmo? Arrancar com ele e, quem sabe, arrastá-lo por cem metros? -desafiou Matthewson, um sujeito que havia feito fortuna garimpando para os lados do desfiladeiro chamado Bonanza, o mesmo que tinha assegurado que seu cão poderia arrastar os trezentos e cinquenta quilos.
-Sem dúvida!
-Bem -sorriu Matthewson e falou bem devagar, propositalmente chamando a atenção de todos em volta. -Tenho aqui mil dólares que dizem que Buck não é capaz de fazer isso. Aqui estão! -e atirou no balcão do bar um saco de pó de ouro do tamanho de um salsichão.
Silêncio absoluto. Se Thornton estava apenas jogando conversa fora, ficara sem saída. Ele sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. A sua língua havia lhe pregado uma peça. Ele não sabia se Buck era ou não capaz de puxar um trenó com meia tonelada. Afinal... era meia tonelada! Aquele peso todo o apavorou. Tinha muita fé em Buck e em sua força e sempre julgou que ele conseguiria puxar uma carga dessas, mas nunca, como naquele exato instante, havia de fato lidado com a possibilidade de fazê-lo. Os olhos de uma dúzia de homens estavam fixos nele. Ninguém dizia nada, apenas aguardavam. Além do mais, nem ele nem Hans ou Pete possuíam os mil dólares.-Meu trenó está lá fora, com vinte sacos de farinha, vinte e cinco quilos cada um -insistiu Matthewson, acuando-o. -Assim, você tem tudo à mão para ficar com essa bolada.
Thornton não respondeu. Não sabia o que dizer. Passou os rostos ao redor em revista, com a expressão perdida de quem havia sido privado de sua capacidade de pensar e buscava alguém que a devolvesse a ele. Cruzou olhares com Jim O'Brien, o rei do Mastodon, outro desfiladeiro do Yukon que lhe rendera muito ouro. O'Brien era um antigo parcerio de Thornton e olhava-o de um jeito como se o estivesse obrigando a fazer o que não queria.
-Você me emprestaria mil dólares? -cedeu por fim Thornton, quase num sussurro.
-Claro! -respondeu O'Brien, arremessando um saco recheado para junto do de Matthewson. -Se bem que duvido que esse cachorro vá dar conta do recado.O Eldorado esvaziou-se, subitamente, todos os seus frequentadores acorreram para a rua. As mesas foram abandonadas, jogadores e crupiês saíram para assistir ao desfecho da aposta, eles próprios começaram a apostar também.
Eram várias centenas de homens, cercando o trenó de Matthewson, a pouca distância. O trenó, com quinhentos quilos de farinha, estava estacionado havia duas horas, debaixo de um frio de sessenta graus abaixo de zero. Sobre a neve endurecida, os esquis tinham se congelado, soldando-se ao solo. As pessoas já ofereciam uma vantagem de dois contra um, apostando que Buck não conseguiria soltá-lo. Houve um desentendimento quanto ao que significava "arrancar" com o trenó. O'Brien argumentava que Thornton tinha direito a subir à barra do veículo e dar a tradicional sacudidela, para quebrar o gelo por debaixo. Mas Matthewson insistiu que a aposta incluía Buck movê-lo, quebrando o gelo por debaixo dos esquis com seus próprios músculos. A maioria das pessoas que testemunharam o acordo deu razão a Matthewson e, imediatamente, a vantagem oferecida contra Buck subiu para três contra um.
Só que não havia quem apostasse em Buck. Ninguém acreditava que ele fosse capaz de realizar tal proeza. Thornton fora precipitado demais, concordara com uma aposta pesada e arriscadíssima. Agora, encarando as coisas de frente, vendo a equipe de dez cachorros que trouxera o trenó até ali, começava a julgar impossível vencer. Matthewson rejubilava-se:
-Três contra um... -bradou. -Ponho mais mil dólares nessa parada! O que me diz, Thornton?
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O Chamado Selvagem
ClassicsUma história que se passa no Alasca em uma época febril, onde homens e cachorros travam uma intensa luta entre a vida e a morte, à procura incessante por ouro. "O leitor se transforma num explorador, a ficção passa a ser uma descoberta emocionante."