Chapter 19

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Bateram todos os recordes. Por catorze dias, mantiveram uma média diária de sessenta e cinco quilômetros de percurso vencido. Perrault e François ficaram se gabando por três dias, pela rua principal da cidade, recebendo uma enxurrada de convites para beber, enquanto a equipe de cães era admirada por todos. Depois disso, a atenção dos habitantes do povoado voltou-se para três ou quatro valentões do Oeste que se meteram a impor a lei, por lá, mas foram crivados de balas, desviando-se, a seguir por outros assuntos.
Foi então que chegaram novas ordens do governo. François aproximou-se de Buck, abraçou-o e chegou mesmo a chorar um pouco. Foi a última vez que teve contato com François e Perrault. Como acontecera com outros homens, deixaram a vida de Buck para sempre.
Buck e seus companheiros foram entregues a um mestiço escocês. Junto com mais uma dúzia de equipes, retornou à trilha que conduzia a Dawson. O trabalho agora não lhe impunha correr à solta, loucamente, nem bater recordes. Tratava-se de um serviço pesado, transporte de carga. Era a entrega da mala postal, levando notícias do mundo para homens que procuravam ouro na penumbra do pólo.
Buck não apreciava esse serviço, mas cumpria-o bem, esforçava-se por fazê-lo apropriadamente, assim como Dave e Sol-leks, que orgulhando-se ou não do que faziam, davam conta de sua parte com correção. Era uma vida monótona, trabalhando com a regularidade de uma máquina. Um dia era exatamente igual ao outro. De manhã, sempre à mesma hora, vinha o cozinheiro, acendia o fogo e servia o desejum. Depois, enquanto uns cuidavam do acampamento, outros atrelavam os cães, e estavam de partida mais ou menos uma hora antes dos primeiros clarões do nascer do sol.
À noite, levantavam acampamento. Alguns armavam as tendas, outros cortavam lenha para a fogueira e galhos de pinheiro para as camas. Outros ainda levavam água, ou mesmo gelo, para o cozinheiro. Os cães também eram alimentados, o que para eles constituía-se no principal acontecimento do dia, se bem que, depois de cada um comer seu peixe, era gostoso vagar sem compromisso, o que faziam por uma hora ou um pouco mais, e conhecer os outros cães. Havia mais ou menos uma centena deles. Alguns eram valentes lutadores, porém bastaram a Buck três brigas para mostrar a todos quem era o melhor por ali. Dali em diante, para afugentar qualquer um, era só rosnar e mostrar os dentes.
Do que Buck mais gostava era deitar-se junto do fogo, com as patas traseiras encolhidas por debaixo dele e as dianteiras estendidas à frente. Algumas vezes, ali deitado, observando as chamas como se estivesse num sonho, parecia-lhe estar vendo, na verdade, outras chamas, outro fogo, e que junto a esse outro fogo, via outro homem também, não o cozinheiro mestiço que estava ali, diante dele. Esse outro homem tinha pernas mais curtas e braços mais longos. Os músculos, em vez de roliços e fortes, eram viscosos, nodosos. Seus cabelos eram compridos, embaraçados, e sua testa projetava-se para trás, por debaixo deles, logo acima dos olhos. Esse homem balbuciava sons estranhos e parecia temer muito a escuridão, através da qual tentava espreitar alguma coisa, sempre, com suas mãos em forma de garra pendendo entre o joelho e o pé. Ele tinha à sua frente, no chão uma vara grossa, com uma pesada pedra atada à extremidade.
Estava quase despido, com apenas uma pele de animal enburacada e com pedaços chamuscados cobrindo-lhe parte das costas, porém possuía muitos pêlos no próprio corpo. Em alguns pontos, como no peito e nos ombros e na parte externa dos braços e das coxas, esses pêlos formavam uma massa espessa, como se fosse a continuação da pele que vestia. Ele não ficava de pé ereto. O tronco inclinava-se adiante dos quadris, e ele caminhava com as pernas dobradas, na altura dos joelhos. O corpo parecia dotado de um molejo especial, alguma espécie de elasticidade quase felina, mantendo-se em estado de alerta, como quem carrega medo perpétuo das coisas que vê e das que lhe são invisíveis.
Em determinadas ocasiões, esse homem peludo dormia agachado junto do fogo, com a cabeça entre as pernas. Nesses momentos, apoiava os cotovelos nos joelhos e mantinha as mãos entrelaçadas por sobre a cabeça, como se para proteger-se da chuva, com seus braços cheios de pêlos.
Para além do fogo, Buck podia enxergar várias brasas cintilantes, sempre aos pares! Sabia que eram os olhos de feras predadoras. Podia escutar o roçar de seus corpos atravessando as moitas e os ruídos que faziam, à noite. Ali, na fronteira do Yukon, sonhando com seus olhos preguiçosamente piscando para o fogo, esses ruídos e essas visões chegados de outro mundo faziam arrepiar-se os pêlos de suas costas, de seus ombros e do pescoço, até que começava a ganir lamentando-se, ou a rosnar, bem baixinho. Era então que o cozinheiro mestiço gritava para ele:

-Ei, você! Buck! Acorde!
Então, o mundo de seus sonhos desaparecia e a realidade retornava diante de seus olhos. Ele levantava-se, abria a boca e espreguiçava-se, para fazer de conta que havia, de fato, dormido.
Transportar a carga postal estava acabando com eles. Haviam emagrecido um bocado e estavam em péssimas condições físicas, quando finalmente chegaram a Dawson. Mas, apenas dois dias depois, partiram do Yukon para Barracks, carregados de cartas do exterior. Os cães estavam exaustos, os condutores resmungavam e, para tornar as coisas piores, nevou todos os dias. Isso significava maior esforço para os cães.
Apesar de tudo, os condutores faziam o possível para ajudar os animais. Toda noite, os cães eram os primeiros a receber cuidados. Comiam antes dos condutores e nenhum homem entraria em seu saco de dormir antes de verificar as patas dos cães que conduziam. Mesmo assim, a força dos animais se esvaía. Do começo do inverno, até então, haviam percorrido quase três mil quilômetros rebocando trenós, sem descanso. Buck lutava para resistir, fazendo seus companheiros trabalharem e mantendo a disciplina. Billie choramingava e gania até mesmo enquanto dormia. Joe estava mais azedo do que nunca, e Sol-leks não deixava ninguém se aproximar dele, não apenas pelo lado cego mas também pelo outro lado.

Porém, de todos, era Dave quem mais se ressentia. Tornara-se lento e irritadiço e, quando o acampamento era assentado, imediatamente ia escavar seu abrigo, onde seu condutor o alimentava. Uma vez desatrelado, deitava-se e não se levantava novamente até a manhã seguinte. Se, no meio da trilha, acontecia de sofrer um esbarrão, por causa de uma parada brusca, ou quando era forçado a retornar a andar, gania de dor. O seu condutor examinou-o, mas não encontrou nada. Seu caso despertou interesse em todos os condutores. Discutiam sobre o assunto, na hora da refeição, e enquanto fumavam antes de deitar-se, finalmente resolveram fazer uma verificação melhor. Foi trazido para junto da fogueira, onde foi apalpado e cutucado  até ganir repetidas vezes. Havia algo errado dentro dele, mas não conseguiram localizar nenhuma fratura óssea nem chegar a qualquer conclusão.

O Chamado SelvagemOnde histórias criam vida. Descubra agora