Por dois dias e duas noites, Buck não deixou o acampamento nem permitiu que Thornton se afastasse de suas vistas. Acompamhou-o no trabalho, vigiava-o enquanto comia, quando se metia debaixo dos lençóis à noite ou se levantava, ao amanhecer. Porém o chamado selvagem alcançou-o novamente, soando mais irresistível do que nunca. Buck tornou-se irrequieto outra vez, assombrado por recordações de seu irmão das florestas e da terra sorridente que, percorrendo toda a imensidão da selva virgem, ficava para além do território dos lagos.
Começou a dormir fora do acampamento, passando dias e dias vagando pelas redondezas. Voltou à cabeceira do riacho e, ali perto, matou um grande urso negro que, cego pelos mosquitos, enquanto pescava, andava a esmo pela floresta, inválido e assim mesmo perigosíssimo. Foi uma luta duríssima, que fez despertar toda a ferocidade ainda inanimada em Buck. Dois dias depois, quando retornou ao lugar onde tinha deixado sua presa, encontrou uma dúzia de carcajus disputando a carcaça e afugentou-os como se fossem insetos. Os que debandaram deixaram para trás dois deles que nunca mais disputariam nada.
A nostalgia do sangue tornou-se mais forte do que nunca. Ele era um matador, um predador, que para viver precisava tirar a vida de outros seres. Deixou-se possuir por um orgulho de si próprio que contagiou todo o seu corpo. Era algo que transparecia em cada movimento toda vez que acionava seus músculos, algo que quase gritava, eloquente como num discurso, na maneira como se conduzia através das florestas e fazia do seu pêlo, já esplêndido, algo ainda mais glorioso. Com as manchas marrons no focinho e acima dos olhos e os riscos de pêlo branco que lhe desciam pelo peito, bem que podia ser confundido com um lobo gigante -o maior de toda a sua espécie.
Possuía a argúcia de um lobo, uma astúcia selvagem, e a inteligência que fundia a de um collie com a de um são-bernardo. Tudo isso junto, mais a experiência adquirida na escola das feras, fez dele uma criatura tão formidável quanto qualquer outra criada nas florestas.
Thornton e seus amigos admiravam seu porte, quando se afastava do acampamento, mas não assistiam à instantânea e terrível mudança que o possuía, assim que penetrava na intimidade da floresta. Ele não estava mais caminhando. Havia se transformado, de uma só vez, numa criatura selvagem, sorrateiro e silencioso como um gato, uma sombra passageira que aparecia de repente e logo a seguir desaparecia entre as outras sombras. Matava para comer, não por prazer, e preferia comer o que ele mesmo matava. Sadicamente, divertia-se em preparar armadilhas contra inofensivos esquilos e, quando tinha um deles sob seu jugo, deixava o pobrezinho ir-se embora e enfiar-se no primeiro buraco de árvore que encontrasse.

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O Chamado Selvagem
KlasikUma história que se passa no Alasca em uma época febril, onde homens e cachorros travam uma intensa luta entre a vida e a morte, à procura incessante por ouro. "O leitor se transforma num explorador, a ficção passa a ser uma descoberta emocionante."