Naquele ano, acredito que meus pais viram mais o advogado que a própria sala de estar. Meu pai não via o seu quarto há muito tempo, já que o gabinete tomou essa finalidade. Montou ali uma cama improvisada e só saía em extrema necessidade. Não o vi muito nesse período. Minha mãe estava decidida a direcionar toda sua frustração para o trabalho.
Nunca vou me esquecer do dia que nos encontramos todos ocasionalmente no corredor do segundo andar. A casa era grande e antiga, por isso, não era difícil se perder por ali, ou evitar ser encontrado. Foi estranho vê-los no mesmo ambiente, sem dois homens de terno e grava os dividindo como dividiam os próprios bens.
-Oi.
Arrisquei.
Meu pai fez um breve aceno com a cabeça e pigarreou desconfortável. Minha mãe deu um sorriso sútil, apenas levantando os cantos da boca. Era impressionante como eles pareciam mais velhos do que realmente eram. Ambos tinham apenas quarenta e cinco anos –muito jovens para ter uma filha de dezenove- mas as rugas de stress e preocupação os envelheciam drasticamente. Os cabelos escuros do meu pai agora estavam acinzentados, como boa parte do seu cavanhaque, e os olhos verdes perdiam o brilho de juventude. Os cabelos loiros da minha mãe pareciam bem ralos e a bochecha, uma vez rosada, agora estava alva e seca. Eu era uma mistura dos dois, o que é quase irônico, já que suas diferenças eram muito mais sobressalentes. Os cabelos escuros dele e os olhos amendoados dela.
-Que bom que você está aqui, Nina- Ela ajeitou a postura, evitando olhar para o futuro ex-marido- Nós queríamos mesmo falar com você.
Descemos até a sala de estar em silêncio. Ele sentou-se na poltrona enquanto nós duas dividimos o sofá. Aquele silêncio seria torturante se já não estivéssemos acostumados.
-Bom- Minha mãe começou, vendo que ele não daria a primeira palavra- Sabemos que não tem sido fácil para você. Os últimos anos- Hesitou- foram complicados para todos nós.
Eu não podia negar, por isso, continuei em silêncio, esperando uma continuação. Vendo que eu não reagiria, meu pai tomou a palavra.
-Nós sentimos muito- Se ajeitou, pondo-se um pouco para frente- Não queríamos te colocar nessa situação delicada. Nós te amamos.
Minha mãe sacudiu a cabeça rapidamente, confirmando. Eu só queria que eles fossem direto ao ponto. Acho que deixei isso muito claro em meus olhares de expressivo desconforto.
-Aqui não é um ambiente saudável para você, Nina. Sei o quão tóxico pode ser viver nesse campo de guerra. Por isso- Ela pausou, pela primeira vez, encarando o meu pai- Decidimos que será melhor para você, passar um tempo com sua avó. Até a poeira abaixar.
Minha avó, Lucy, foi muito presente na minha infância. Adorava ir à sua casa e brincar com seus gatos, Boris e Bonnie. Minha mãe nunca me deixou ter um, então aproveitava a oportunidade para cuidar deles. Quando eu tinha pouco mais de sete anos, meus avós se mudaram para Londres e a frequência diminuiu intensamente. Durante esses doze anos, creio que os vi três vezes, no máximo.
-Você quer dizer, Londres?- Perguntei um pouco confusa- Vocês querem que eu vá para Londres?
-É temporário- Ele disse- Mas sei que vai fazer muito bem para você.
-Quando?
Acho que com o tempo, perdi a afetividade com meus pais, ou simplesmente adquiri o hábito de respostas curtas.
-Ao final dessa semana. Quanto mais rápido, melhor- Minha mãe pôs o braço ao meu redor, num abraço desajeitado.
-Parece uma boa ideia- Levantei-me e saí.
Eu sentia falta dos meus avós e realmente estava muito ansiosa para vê-los novamente, mas a ideia de mudança me assustava um pouco. Eu não tinha nada que me prendesse à Salvador, só, talvez, a faculdade e uns poucos amigos. Quem sabe, novos ares realmente fossem necessários. Ali, era como viver numa bolha, mas meu corpo já estava tão acostumado com o ar rarefeito que o oxigênio sequer fazia falta. Porém, quando penso no primeiro segundo de liberdade, o meu pulmão se enche novamente.
***
Na quinta feira, minha mala estava pronta e todos os meus pertences empacotados. Trancamos a faculdade e me despedi de todos os meus amigos no dia anterior.
O caminho até o aeroporto foi silencioso. Pus o fone de ouvido, como sempre, e deixei que a música falasse por si só. Ao lado de fora, via a paisagem da minha cidade natal sendo deixada para trás. Não fazia a menor ideia de quando a veria de novo, por isso, dessa vez, olhei para cada detalhe com mais atenção.
-Chegamos- Meu pai parou o carro.
O som das rodinhas arranhando o asfalto frio era o único barulho audível. Eu estava pelo menos três passos afrente dos meus pais, que pareciam reaprender a conviver em conjunto, ainda que pudesse sentir o peso daquele clima e escassez de troca de olhares.
Uma plaquinha azul indicava o embarque no andar de cima.
-Está com fome?- Minha mãe perguntou enquanto subíamos a escada rolante.
-Muita.
Paramos num café e nos sentamos. Aquela era a nossa primeira refeição juntos nos últimos treze meses.
-O sanduíche está gostoso, Nina?- Meu pai pergunta enquanto assopra a sua xícara de café com leite.
Afirmei com a cabeça enquanto mastigava. Assim que terminamos, vamos direto para o embarque. Algumas famílias se despediam e um casal chorava, enquanto a garota deixava a mala de mão cair, dramaticamente. À nossa direita, um menino, provavelmente da minha idade, se despedia dos pais. Eles seguravam a mão enquanto o viam desaparecer pela porta. Olhei para os meus pais, que fingiam se distrair com alguma coisa para evitar o clima embaraçoso já existente. Por um segundo, nos olhamos, os três, sem saber ao certo o que fazer. Os dois dão um passo para frente, e com o susto, voltam para o mesmo lugar. Meu pai faz sinal para que ela vá primeiro e me abrace. Isso era tão irritante. Peguei cada um pelo ombro, e ao mesmo tempo, dei um forte abraço. Aos poucos, seus membros foram descontraindo, até que nos acolhemos num gesto de carinho.
-Parem de agir como duas crianças- Sussurrei com uma pequena risada.
-Eu te amo- Minha mãe me apertou ainda mais.
-Nós te amamos- Meu pai corrigiu.
Quem olhasse de fora pensaria que somos uma grande família feliz. E, de certa maneira, naquele instante, nós realmente éramos.
***
O avião finalmente decolou.
A tonalidade do céu agora adquiria algo entre rosa e laranja, com leves risquinhos azuis. Poucas nuvens decoravam a imensidão que me rodeava. E à medida que a nave ganhava altitude, pequenos nós internos eram desfeitos. Respirar era tão bom. Meus problemas pareciam ter ficado ali, no térreo, e eu estava muito alto para ser alcançada.
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Nem Tudo São Flores
Teen FictionPor muito tempo, Valentina viu-se obrigada a refugiar-se em seus pensamentos e livros preferidos. Nunca imaginou que o relacionamento conturbado de seus pais pudesse causar-lhe tantas cicatrizes. Numa tentativa desesperada, Nina é mandada para a ca...