XXXV -Alícia

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Todos ficaram muito contentes em terem silênciosamente concordado em nunca mencionar a cena presenciada. Não olhavam uns para os outros, não emitiam som algum. A neve caía graciosamente e congelava a crina dos cavalos. Alícia cavalgava em Jonus com seu irmão. Missie estava mais para trás, sozinha, quieta e ainda levemente boquiaberta. Bia andava na lama, pouco atrás de olho-de-prata. Mais uma vez Dave estava bem a frente, caminhando com as mãos nos bolsos e os olhos na lama. Os cavalos trotavam devagar. Disseram que estavam perto do tal rio. Riley não queria correr. Alícia também não. Tudo o que ela queria era socar uma parede.

A expressão nos rostos de protetor e protegido era algo exatamente no meio entre satisfação e arrependimento. Nenhum deles dissera uma palavra ao juntarem-se ao grupo para cavalgarem. Não explicaram sobre não quererem montar no cavalo, nem sobre o que tinha acontecido a Dave, nem o porque de ignorarem os três chamando-os por um, ou alguns, beijos. Ninguém perguntou e ninguém queria saber. Alícia apertou o cabo de uma de suas facas até o nó de seus dedos ficarem brancos. Queria muito, muito mesmo saber se conseguiria arremessar todas de uma vez usando Dave como alvo, socar algo duro ou destruir o quarto de Ramona.

Algo lhe dizia que as expressões deles não tinham nada a ver com o beijo em si. A satisfação era por ter feito a maldita fênix de luz sossegar, por não estarem mortos. O arrependimento era por causa de outras pessoas. Ela não sabia sobre Bia, mas Dave tinha Isabelle em sua mente. Podia ver em seus olhos vidrados na neve. Essa obcessão do menino pela representante do mal não era apenas irritante. Era uma ofença. Ela sofria muito nas mãos da emnina, e Dae insistia em fazer perguntas e defende-la. Socou a própria coxa e sentiu-se um pouco melhor até a dor lhe atingir. A situação toda a fez pensar em seu parceiro de natação. Os beijos curtos e a sensação infinita de borboletas lutando para saírem de seu estômago.

Laura Souza era a única que sabia. Às vezes pensava em contar para Riley, mas não via motivos bons o suficiente para fazer. Acabariam num silêncio constrangedor como o que estavam vivendo e nenhum dos dois ganharia alguma coisa com a informação. Só imaginava que ele merecia saber. Tateou seu pescoço para olhar dentro do pingente mais uma vez.

Os olhos de Riley. Seu sorriso. O pesadelo. Ela odiava Isabelle. A culpa de toda aquela tortura ela dela. Não sabia como Satomak estava entrando em seus sonhos, mas sabia o porque. Isabelle não gostara nem um pouco das verdades ditas por Alícia sobre sua família. Ela esperava que fosse o suficiente para a representante de Tabata sofrer tanto quanto Alícia havia sofrido. Queria que ela se torturasse sozinha, pensando nos pais e no irmão mais velho. Na vida que deixou para trás. Em Dave. Ele se torturava por Isabelle. Alícia tinha certeza que Isabelle também se torturava por ele. Isso a deixava quase satisfeita. Pelo menos sabia que sua torturadora não era 100% feliz.

Ah, Adnei Frederickson, papai querido... O que é esse sonho maldito, afinal?

Ela desceu do cavalo, andou até uma árvore e socou-a até sangue escorrer de seu punho. Depois enfiou as facas, uma por uma, no tronco de casca grossa. Chutou a planta também, sabendo que ninguém a não ser o irmão estaria olhando para ela naquele momento. Ele olhou para ela com pena. Alícia quase atirou lama nele, mas apenas recolheu as facas e subiu de volta nas costas de Jonus. Seu irmão deu alguma ordem a Jonus e o cavalo acelerou. Trotou pela lama, ultrapassou Dave e só diminuiu o passo quando estava longe dos outros três.

-É aquele sonho do orfanato, não é? –ele perguntou. –É sobre isso que você fala com Dave, é por isso que está tensa e fica olhando essa foto sem parar.

-Sim –falou.

Não. Pensou. Vai muito além disso. Envolve o ninguém o nada e o tudo. O maldito ninguém-nada-tudo. Isabelle tinha deixado bem claro que Dave era o único que poderia saber sobre o local do sonho. Jamais se perdoaria se alguém fizesse mal a Riley por que ela havia lhe contado. E jamais perdoaria Isabelle. Jamais. Porém o sonho do orfanato não precisave ser um segredo. Ninguém dissera que deveria ser. E além de tudo, era sobre o pai dos dois, não só dela.

-É sempre a mesma coisa –ela disse. –O orfanato, nosso pai, Pedro e Pedro. E esse maldito conforto que vem com Pedro.

-Espera, você também sente isso? –ele virou-se para ela, de costas para a cabeça de Jonus. –Braços fortes, carinho e...

-E paz –ela completou. Arregalou os olhos para seu irmão –Sim, eu sinto. E morro de medo. Não sei o que é isso, não posso controlar, não quero...

-Ei, calma! –ele abraçou-a. Não existia nada no mundo mais confortante que o abraço de Riley. Seu calor, seu cheiro. Estaria segura enquanto estivesse nos braços de seu irmão. –Tudo vai ficar bem, Lice.

Ela não pode evitar que uma lágrima escorresse por seu rosto. Lice ela sorriu. Ah, Riley... Lice! Era como ele a chamava antes de aprender a falar Alícia propriamente. Ficou sendo seu apelido até os qutro anos. A lembraça desse nome era muito gostosa. Lice e Alícia eram duas pessoas completamente diferentes. Lice era uma garotinha muito ingênua, bagunceira e agitada. Alícia era a versão corrompida da pequena Lice. Quieta, maliciosa e com a ideia de que é independente. Riley era o único que conseguia trazer Lice devolta para dentro dela. Não precisava de malícia e nem precisava ser independente. Seu irmão estava lá para ela.

-Espero descobrir logo o que isso quer dizer –ela resmungou no ombro dele. Podia distinguir um som de água corrente e achou que finalemtne estavam chegando.

-Por enquanto não é nada –ele disse. –E não pode ser coisa boa, de uma forma ou de outra. Melhor ignorar, não acha?

-Não sei, mas nem quero mais saber –ela sorriu.

Riley sorriu também. Deu um beijo na testa dela e voltou a sentar-se corretamente. Lice abraçou seu irmão e fechou os olhos. Um sorriso verdadeiro que era quase novidade em seus lábios. O cavalo diminuiu a velocidade. Alícia levantou o rosto e viu o rio. Ele corria da direita para a esquerda, agitado, gelado. No fim da estradinha de lama e gelo, uma casinha de madeira próxima à margem esperava por eles. Pegadas de cães e de um humano seguiam para a floresta. Dneva estivera instalada ali.

-Saímos assim que eles nos alcançarem –Riley comentou. Desmontou do cavalo e agradeceu. –Obrigada por nos trazer até aqui, Jonus. Espero que não tenha problemas para voltar.

O cavalo relinchou alguma coisa para Riley e Alícia desmontou. Arrumou as facas no cinto e andou até a grama lamacenta da margem. Havia três barcos traineira escondidos atrás da casa. Casco cumprido e cabine com o timão e vidros quebrados. Não havia toldo na parte da frente. Jonus esperava pacientemente pelo colega. Riley achou algumas pedras e atirou-as na água. Alícia abraçou-o e os dois ficaram ali, numa paz verdadeira, com a neve caindo em seus cabelos esperando por seus companheiros de viagem.

Érestha- Castelo de Marfim  [LIVRO 2]Onde histórias criam vida. Descubra agora