Pertences

64 11 28
                                    

Carinho_ manifestação de solidariedade, compaixão, afeto e atenção que é trocada entre os seres vivos, principalmente os mamíferos. Um gesto de carinho não se restringe apenas ao contato físico, como beijos e abraço, mas também a ações mais abrangentes e simbólicas. O carinho é uma demonstração delicada que não se divide por cor, raça, religião, cultura ou sexo, podendo ocorrer inclusive entre seres humanos e outros animais, ou mesmo entre os próprios bichos.


 A minha última semana em Haringey começou mal.

O dia estava ainda mais quente do que o costume, e o meu despertador não tocou. Acordei tarde e com imensa coisa para fazer. Na parte da manhã que se aproveitava - cerca de duas horas - fui até o hospital e tratei de toda a papelada para a minha transferência. Acertei alguns pormenores com o Carl e decidi que a minha entrada como diretora no Havai seria uma total surpresa para o pessoal hospitalar de lá. Queria o tão saboroso anonimato. Desse modo, as reuniões que aconteceriam antes da minha tomada oficial como diretora, seriam realizadas na minha nova casa. Teria uma semana no Havai para ficar a conhecer tudo o que envolvesse o hospital de St. Hope e para isso teria a ajuda do antigo diretor. Pelo que soube, ele estava a entrar para a reforma e ninguém sabia que era neste mesmo mês que isso aconteceria. Portanto, surpresa total.

Toda a gente do hospital onde eu trabalhava há menos de dois dias, sabia que eu estava de partida para o outro lado do mundo, pelo que imensa gente me felicitava de cada vez que eu passava no corredor.

O processo para encontrar um cirurgião para o meu lugar estava a correr bastante bem e cheguei mesmo a sugerir alguns antigos colegas da universidade.

O Buster, o meu cão mais maluco do que a dona, teria de ficar mais duas semanas em Inglaterra. Iria ter comigo mais tarde, quando estivesse disponível o voo especial para caninos e a Rose ficaria encarregue de tratar dele o tempo que eu precisasse.

Nesse dia, almocei uma sandes de uma lanchonete que estava na rua. Não tinha tempo para mais e de seguida, dirigi-me, a correr, para o centro imobiliário. Confirmei todos os processos tanto da minha casa no Havai, como no meu apartamento de Haringey.

Tudo se começava a acertar.

Na terça-feira de manhã tinha planeado começar a empacotar os meus pertences. Tinha de escolher bastante bem o que iria doar para a caridade e o que iria levar comigo, pois nunca na vida, eu conseguiria ter lá – Havai -, tudo o que tinha cá - Haringey.

No entanto, o Kevin apareceu à minha porta de surpresa e eu fiquei sem saber o que dizer. Queria antecipar a minha ida à casa da mãe dele, visto que domingo já estaria do outro lado do mundo. Como eu também gostava de ter uma oportunidade de me despedir da D. Marianne, aceitei o convite do meu ex-marido e troquei de roupa para iniciar uma viagem de automóvel de cerca de meia hora até a casa da minha ex-sogra.

Ao contrário do que eu pensava, esse tempo não foi desconfortável. Falamos sobre música, celebridades e destinos de sonho, alternando gargalhadas.

A casa da D. Marianne estava bastante degradada. Apesar das várias tentativas do seu filho a tirar dali, ela resistia à partida de onde vivera toda a sua vida. A vivenda tinha as paredes em cor-de-rosa escuro desbotado, com partes da tinta a cascar. A porta era de madeira escura maciça e as janelas tinham pequenos vasos de flores a descerem pela parede. O Kevin deu três toques na porta e a senhora de idade gritou de lá de dentro.

-Quem é?

-Sou eu, mãe! – o Kevin responde de volta e olha-me. – Pode abrir!

A porta de madeira range e começa a abrir-se. A mulher de quase noventa anos aparece, com as rugas a emoldurar-lhe o rosto cansado. Ela abre a boca rosada quando me vê e logo de seguida, um sorriso preenche o seu rosto. Ela está tal e qual eu me lembrava. Os olhos castanhos reproduzidos no seu filho, escondidos atrás dos óculos. Os lábios finos e as pestanas enfraquecidas. Apesar de tudo, a sua figura esguia e delicada é acolhedora o bastante e eu sinto imediatamente o cheiro a velas perfumadas tão características da casa dela. Os seus pés avançam quase que insignificantemente e os seus braços diminuem o espaço entre nós. Eu correspondo ao abraço, resistindo ao impulso de chorar. Faz muito tempo que não via esta senhora e já me tinha esquecido o quanto gostava dela.

FROM KATEOnde histórias criam vida. Descubra agora