Segredos

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Surpresa_ O que provoca espanto; coisa ou situação que causa admiração; aquilo capaz de surpreender, de espantar: minha promoção foi uma surpresa.

Minha querida Kate,

Tenho consciência de que quando leres estas minhas palavras não estarei aí contigo. Posso até estar a ver-te do céu e a zelar por ti, como te contei quando tu eras pequenina e eu tentava explicar-te o que é a morte. Hoje eu sei que ela é só mais uma etapa da vida.

Quando tu nasceste, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Eras tão pequenininha e os teus dedos minúsculos não se cansavam de me tocar no peito, como se precisasses de sentir o meu calor, de me sentir. Sempre te disse que vivia os teus dias como se fossem os meus últimos, pois tu eras a minha vida. A minha vida era a minha filha, a minha metade com a metade do homem que eu desprezava, que incrivelmente deu origem à pessoa maravilhosa que tu és. Lembro-me de todos os dias que passei contigo. Do teu primeiro dia na escola, do teu primeiro dente a nascer, da tua primeira noite fora de casa e em como eu fiquei preocupada contigo. O dia em que tu casaste e eu me apercebi de que não eras mais minha, mas sim do homem que tu amavas e que te amava com a mesma intensidade.

A verdade, meu amor, é que eu vivi todos os teus dias, todas as tuas preocupações, todos os teus sucessos, como se fossem os meus. Como se a tua vida, fosse a minha. E isso foi o meu maior erro. Não, o meu segundo maior erro.

Não tinha consciência da forma como a minha vida girava em torno de ti, e o teu pai nunca se importou realmente comigo para me alertar. Ao contrário daquilo que pensas, ele não começou a beber quando tu nasceste. Ele já bebia bem antes disso.

Conheci-o num dos bailes de Tottenham. Ele nessa altura era sóbrio e um belo moço. Encantei-me com os seus olhos bonitos e ele em pouco tempo tinha-me presa no seu feitiço.

Engravidei e fui obrigada a casar. Ainda antes de o bebé nascer, ele começou a passar noites fora de casa e a chegar bêbado. Pouco depois, ficou violento e não tinha cuidado com o nosso filho. Numa das vezes em que ele me bateu, fiquei de tal forma magoada, que o parto teve de ser forçado. Sentia imensas dores e a minha prima que era parteira ajudou-me em todo o processo.

O bebé cresceu e tornou-se num bonito rapazinho. Tinha os meus olhos azuis e o cabelo loiro do teu pai. A violência continuou e eu, com medo, não fugi. Tinha uma criança aos meus cuidados e tinha esperança de que o teu pai percebesse que eu o amava e parasse de me espancar. Depois, começou a violar-me. Sinceramente, não te posso dizer se és ou não fruto de uma violação, pois passado algum tempo apenas deixei de protestar e deixava-o utilizar o meu corpo como se fosse um objeto e lhe pertence-se.

Desculpa dizer-te as coisas assim. Quero que saibas que da minha relação com aquele homem, tu e o teu irmão foi o que tive de melhor na vida.

Tu ainda eras uma bebé quando eu tentei fugir. Peguei em ti e no teu irmão e corri o mais depressa que pude daquela casa, daquele homem. E esse sim, foi o meu maior erro. Escondi-vos numa cave e fui procurar ajuda. Quando voltei para vos buscar, não vi o teu irmão. Tu choravas e esperneavas, mas o teu irmão não estava em lado nenhum. Voltei para casa, com a esperança de o encontrar com o teu pai, mas apenas encontrei um homem furioso. Escusado será dizer que levei mais porrada do que tinha levado em toda a minha vida. Naquele dia, acreditei que merecia. A culpa de o teu irmão ter desaparecido era minha e eu não voltei a tentar fugir com medo de te perder a ti também. Espero que me perdoes, Kate. Sei que a tua infância foi miserável e que o dia em que o teu pai morreu foi o melhor e o pior dia da tua vida. O melhor pois aquele estupor finalmente nos deixou em paz e o pior porque perdeste a única, apesar de triste, referência paterna.

Culpo-me todos os dias por aquilo que te fiz passar, mas desejo do fundo do coração que nunca esqueças que tudo o que fiz, tudo o que sofri, foi por ti e um dia, pelo teu irmão.

Sei que sempre pensaste que eras filha única e isso é outra coisa que lamento. Não ser corajosa o suficiente para ver o teu olhar de deceção quando descobrisses a verdade.

Apesar de tudo, sou egoísta o suficiente para te fazer um último pedido. Encontra-o. Procura o teu irmão e diz-lhe que no tempo que passei com ele, amei-o com todos as minhas forças. Peço-te isto a ti porque sei que és mais corajosa do que eu alguma vez fui ou alguma vez serei.

Amo-te. Lamento,

A tua mãe.

FROM KATEOnde histórias criam vida. Descubra agora