23. shhhhhh

1K 130 47
                                    


  Em homenagem a Camila, eu deveria pedir um chocolate quente. No Monet's, ele é servido com pequenos marshmallows boiando. O único lugar que conheço que fazisso. Mas quando a garota pergunta, eu digo "café", porque sou mão de vaca.

  O chocolate quente custa um dólar a mais. Ela empurra uma caneca vazia na minha direção e aponta para o balcão self-service. Eu coloco creme de leite suficiente para cobrir o fundo da caneca. O resto eu encho com um blend chamado "Peito Cabeludo", porque me parece algo altamente cafeinado que talvez me faça ficar acordada até tarde para terminar de ouvir as fitas. 

  Acho que preciso acabar de ouvi-las, e acabar hoje à noite. Mas será que eu deveria fazer isso? Em uma noite? Ou deveria achar a minha história, escutar e, depois, só ouvir o suficiente da seguinte para ver a quem devo passar o pacote? 

 — O que você está escutando? - é a garota do balcão. Está ao meu lado, inclinando os recipientes de aço inoxidável que contêm creme de leite, leite desnatado de soja. Está conferindo se estão cheios. Duas riscas negras, partes de uma tatuagem, se estendem pelo pescoço e desaparecem no cabelo curto e repicado dela.Olho para baixo, na direção dos fones amarelos pendurados em torno do meu pescoço. 

 — Só algumas fitas. 

 — Fitas cassete? - ela segura o recipiente de leite de soja junto da barriga.— Interessante. Será que são de alguém que conheço? - faço um movimento negativo com a cabeça e jogo três cubos de açúcar dentro do café. Ela segura o recipiente com um só braço, como se fosse um bebê, e estende a mão. — Nós frequentamos a mesma escola, dois anos atrás. Você é a Lauren, certo? 

Coloco a caneca no balcão e encaixo minha mão dentro da mão dela. A palma está quente e macia. 

 — Nós fizemos uma matéria juntas, mas não conversamos muito — ela explica. Ela parece mesmo um pouco familiar. Talvez seu cabelo esteja diferente.— Você não me reconheceria. Eu mudei muito depois do colégio — ela revira os olhos fortemente maquiados. — Ainda bem. -coloco uma pazinha de madeira no meu café e mexo. 

 — Qual foi a matéria que fizemos? 

 — Marcenaria. - continuo não me lembrando dela. 

 — A única coisa que ganhei com essa matéria foram farpa sde madeira nos dedos — ela ri. — Ah, e um banco de piano. Ainda não tenho um piano, mas, pelo menos, o banco está pronto. Você lembra o que fez? - continuo a mexer o café. 

 — Uma prateleira para temperos.- o creme de leite se dilui e o café fica marrom claro, com um pouco de pó moído escuro subindo à superfície.— Sempre achei você a garota mais legal de todos. Na escola, todo mundo achava isso. Meio quieta, mas tudo bem. - Naquela época, pessoas diziam que eu falava demais. 

  Um freguês limpa a garganta perto do balcão. Nós duas olhamos, mas ele não levanta os olhos do cardápio de bebidas. Ela se vira para mim e apertamos as mãos novamente 

— Bom, talvez eu veja você por aí, quando tiver mais para conversar. 

  Ela volta para trás do balcão. É isso que eu sou. Lauren, a garota legal. Será que ela ainda diria isso se escutasse estas fitas? Vou para o fundo do Monet's, em direção à porta fechada que dá para o pátio. Pelo caminho, mesas cheias de pessoas comas pernas estendidas e cadeiras esparramadas formam uma pista de obstáculos, me convidando a derramar o café.

  E me recordo, horas antes neste mesmo dia, de ter visto um pedaço de papel cair do lado de fora de uma loja de sapatos. Não sei ao certo por que andei por ali tantas vezes. Talvez eu estivesse procurando alguma conexão com Camila, alguma conexão fora da escola, e essa tenha sido a única que consegui pensar. Em busca de respostas para perguntas que eu não sabia como fazer. Sobre a vida dela. Sobre tudo. Respiro fundo. 

  Conforme as histórias vão passando, uma atrás da outra, eu me sinto aliviada quando meu nome não é citado. Em seguida, vem o medo daquilo que ela não disse ainda, do que ela vai dizer quando chegar a minha vez. Porque a minha vez está chegando. Eu sei. E quero que isso acabe.O que eu fiz para você, Camila? 

  Enquanto aguardo as primeiras palavras dela, olho fixamente para o lado de fora. Lá está mais escuro do que aqui dentro. Quando retraio o olhar e ajusto o foco, enxergo meu próprio reflexo no vidro. E desvio a visão. Encaro o walkman na mesa. Continua sem nenhum som, embora o play esteja pressionado. Talvez a fita não tenha encaixado direito no lugar. Por isso, aperto o stop. Depois, o play novamente. Nada. Rodo o polegar sobre o botão do volume. A estática nos fones do ouvido fica mais alta, por isso volto a abaixar. Eespero. 

Play.

  Shh!... Se você estiver conversando na biblioteca. 

A voz dela, num sussurro. 

  Shh!... No cinema ou na igreja. 

Escuto mais de perto. 

  Às vezes não tem ninguém em volta para mandar você ficar quieto. 

  Às vezes você precisa ficar em silêncio quando está completamente sozinho. Como eu, agora, neste instante. 

   Shh!   

suicide girl ; camila&lauren (revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora