II - Vertigem

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    Não se passaram dois dias antes que a ascensão de Anna desse os primeiros passos para a borda do precipício para iniciar sua queda. 

   Thomas pediu  hospedagem em Pendiham ao meio-irmão. Disse que seu reino estava a salvo, e que o que tinha de fazer no reino do irmão era muito mais importante do que qualquer outra coisa - não especificou, porém, o que tinha a fazer ali.

    A rainha ficava feliz com sua estadia, mas algo indignava Anna ao ponto de ela quase esquecer o novo sentimento que surgira ao conhecer o cunhado: ele não comparecia às missas.

    Em um reino religioso como Pendiham - que seguia rigorosamente as regras ditadas pela Igreja e nenhuma realidade além daquela era conhecida, lhe parecia muito estranho que alguém com uma posição tão alta quanto Thomas se abstivesse de um compromisso com a crença de seu povo. O cunhado sempre estava em suas preces , mas de que adiantava se ele mesmo não purificava sua alma confessando-se ou apenas ouvindo ao padre? Além do mais, sequer costumava aparecer em lugar algum durante o dia, o que era uma extrema falta de respeito para com seus anfitriões. Anna sabia que não era a única: tanto os criados quanto o povo de Pendiham notaram.

    Durante um jantar, na noite de Páscoa, a rainha não pôde deixar de notar o desconforto do cunhado durante as preces, nesta noite mais longas.

    Quando grande parte dos convidados se retirou, a moça foi até o cunhado.

     — Thomas, precisamos conversar.

    — Mas é claro, irmãzinha... - respondeu gentilmente – O que a traz a mim assim, parecendo aflita?

    — Suas atitudes.

    — Minhas atitudes? – perguntou, em aparente confusão.

    — Sim! – sibilou, puxando-o para um canto onde os criados não pudessem ouvi-los – Thomas, por tudo que é mais sagrado...  Nunca o vi em uma missa sequer! E hoje faltou cuspir na cara do padre. Não pode agir desta forma. As pessoas, principalmente aquelas mais sensíveis às próprias crenças, notam. Não me diga que você mesmo não notou que os criados, desconfiados, tratam-no de forma diferente! Você é irmão do rei e tem deveres na corte enquan...

    — Irmãzinha – ele a interrompeu parecendo desconfortável e, ainda assim, desejoso de ajudá-la com alguma coisa. Era claro que ele estava constrangido -, acalme-se!

    — Qual é seu problema? – perguntou irritada, mas de uma forma que não perdia sua doçura – É um daqueles que vangloria diversos deuses e pratica a feitiçaria?! Thomas, estamos em tempos inqui...

    — Anna, respire para falar – ele deu um sorriso terno -. Não precisa se preocupar com a inquisição. Ninguém me fará mal algum. E não, não creio em deuses e deusas. Mas também não creio no seu deus. E equivoca-se ao dizer que eu seria capaz de maltratar seu padre: eu não creio, porém respeito sua crença.

    A explicação não a satisfazia.

    — Poderia ao menos comparecer às missas – disse mais calmamente -, o povo...

    — O povo terá de compreender minhas limitações, irmãzinha – Ele estendeu o braço e subiu a manga, exibindo a pele de um tom tão claro que agora, ao realmente prestar atenção, surpreendeu Anna -. Sofro de uma doença que impossibilita meu contato com a luz do sol. Creio que notou, assim como seu povo, que nada faço durante o dia e só vivo depois que o sol se esconde.

    — Me desculpe, Thomas... - sentida, Anna tocou levemente o braço do cunhado, como se isso fosse ajudar a demonstrar o quanto sentia - Eu não fazia ideia.

    — Estou acostumado que se incomodem. Não é realmente um problema. – E ele esboçou um sorriso triste - Mas poderia me ajudar, como forma de se desculpar.

    Pelo tom, era evidentemente uma brincadeira, mas ainda assim Anna sorriu e acenou brevemente com a cabeça, como que para encorajá-lo a continuar, um pouco mais tranquila pelo gracejo dele.

    — Seria um prazer se pudesse me acompanhar nas caminhadas noturnas. É realmente muito solitário.

    Tomada de compaixão e culpa, Anna prometeu que iria quando pudesse. 

    Mais tarde, após rolar acordada na cama esperando o sonho chegar, quando finalmente o cansaço tomava conta de seu corpo e a fazia devanear entre a consciência e o mundo onírico,  imaginou como seria se ao invés de John, houvesse casado com Thomas.

Antes da EternidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora