XIV - Transição

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    Os meses passaram rápidos e a comida foi aceita por Anna com mais naturalidade após o terceiro mês de gestação. É claro que era trabalhoso e desconfortável a constante e necessária alimentação a base de sangue humano, mas era satisfatório.

    Anna se sentia viva.

    É verdade que era deprimente, por vezes, sentir-se viva num reino morto. Mas Tomas esforçava-se para também estar alimentado a maior parte do tempo e, assim, viveram seus breves meses como um casal quase normal.

    Foram meses de uma saudável gestação - até onde isso era possível na situação de Anna - e, quando os primeiros flocos de neve atingiram o solo do reino noturno, o sonho teve um prelúdio de seu fim: Morgana veio ao mundo. Era um bebê saudável. Nasceu no tempo certo e era bem gordinha, além de ter a cabecinha já bem coberta por cabelos escuros.

    Por cerca de dois anos (o tempo de a menina desmamar totalmente) Tomas e Anna mantiveram o costume da alimentação constante, algo que não chegou exatamente a assustar o país em tempos de guerra. 

     O desaparecimento de pessoas muito comum, o que favorecia o abate.

    Morgana foi um bebê amado até esta época. E devido ao esforço dos pais e obediência de seus servos, até levou uma infância feliz, embora lhe fosse vetada a saída do castelo. Os habitantes da vila que circundava o castelo jamais a tinham visto, e apenas imaginavam seu rosto pelos relatos daqueles que trabalhavam dentro do castelo. Para eles, era estranha a ideia de um humano viver entre eles, porém, em sua obediência extrema à Senhora da Noite, jamais se atreveram a tentar qualquer coisa para ver ou ferir a princesa.

    O rei e a rainha, claramente, receavam que a menina Morgana, como humana, fosse apresentada ao mundo singular em que viviam cedo demais. Haviam inclusive proibido que seus habitantes levassem qualquer vítima para as proximidades do reino. Queriam que ela tivesse uma infância normal, exatamente como cada um daqueles que agora viviam na eternidade. Para sua proteção, além das intermináveis regras impostas pelos soberanos, Morgana tinha uma guarda exclusiva de homens escolhidos a dedo por seus pais, além de sua dama de companhia, de quem sempre admirara os cabelos louros.

    No início da adolescência já era fluente em latim e francês. Tinha conhecimentos exímios em artes e música e dedilhava uma harpa e um piano tão bem quanto qualquer músico que seus pais houvessem conhecido. O corpo de menina já se transformava no de uma mulher, e deixava indícios de que seria ainda mais bela fisicamente do que a mãe. Herdara a cor dos olhos e dos cabelos do pai, mas o olhar e o ondular dos fios da mãe. Tinha uma imponência natural, embora fosse muito doce e carismática. Os traços finos do rosto tornavam-na quase uma escultura angelical, principalmente quando estava eufórica e suas bochechas rosavam. Era uma menina realmente linda. Uma mistura das melhores características dos pais, mas com sua própria personalidade. Singular.

    A única coisa que a deixava ansiosa e impaciente era a chegada de seus dezessete anos, já que a mãe a havia prometido que quando completasse o décimo sétimo aniversário, seria apresentada como princesa herdeira a todo o povo em uma cerimônia. Apenas após esse dia poderia deixar o castelo e conhecer a Santhomé que via através das janelas ou do topodas altas torres.

    Sempre refletia sobre quão grande era o mundo enquanto lia ou via o  horizonte através dos limites que lhe eram impostos. E o dia de conhecê-lo estava chegando.

    Ou ao menos assim pensava ela.

    Isabella entrou no quarto. Seu rosto sempre jovem e inexpressivo saudou Morgana assim que a garota abriu os olhos.

— Bom dia, princesa.

    A menina sorriu, levantando-se e desfazendo-se das roupas de dormir. Não respondeu com palavras, mas seu sorriso já retribuía à saudação. Notando que Isabella dispusera toalhas aos pés da cama, correu para que a mulher a banhasse logo.

    A água no recipiente moldado em um material diferente chamado Rus – muito semelhante ao vidro, mas que mantinha bem o calor da água e que jamais vi em outro lugar que não Santhomé - era morna e agradável e a menina estava bem relaxada quando voltou a ouvir a voz da criada:

— Está ansiosa pelo dia depois de amanhã?

    Morgana, de olhos fechados, exibiu um sorriso simples e enigmático.

— Um pouco nervosa... - respondeu depois de algum tempo. A voz, já de mulher, parecia muito com a da mãe e a forma naturalmente sedutora de pronunciar as palavras igualava-se, ou até mesmo ultrapassava a do pai.

— Não deve ficar. A cerimônia será bastante simples. Quero dizer... será maravilhosa, suponho... jamais vi uma. Mas serão simples teus gestos e necessidades nela. A maior parte realmente cerimonial caberá aos teus pais.

    A menina acenou com a cabeça, confirmando. Seguiu-se um longo silêncio.

— Tenho medo, entende? Mamãe disse que depois da cerimônia me parecerei mais com vocês. - não queria parecer indelicada, então acrescentou - Não que eu não queira! Muitas vezes acho-os tão... atraentes! Mas parecem frios. Não reagem como eu a estímulos, sejam positivos ou negativos. Nunca os vi chorar, por exemplo -. Diante de uma tentativa de interjeição de Isabella, Morgana continuou, elevando ligeiramente a voz – Jamais me faltaram com nada! Mas vejo certo esforço em serem carinhosos comigo, por exemplo. A realidade é que eu os vejo tão iguais entre si e tão diferentes de mim! E eu penso... - hesitou, como se não tivesse certeza se deveria ou não dizer aquilo -  Isso é para me apresentar como futura rainha, não é? Mas e se eu não quiser ser rainha?

— Você será a rainha – disse Anna, que entrara silenciosamente no quarto, ao mesmo tempo em que dispensava Isabella com um gesto.

    A criada saiu sem questionamentos, obediente. Então Anna tomou o lugar dela, que antes esfregava as costas da princesa.

— Foi apenas uma pergunta hipotética - justificou-se, olhando brevemente para trás.

— Que não voltará a repetir.

— Sim, mamãe -. Engoliu em seco. Não gostava quando a mãe a tratava com mais frieza do que o habitual. Tentou puxar um assunto que julgava corriqueiro – Li em um dos muitos livros que me deram, certa vez, sobre o amor. Cheguei a conclusão de que os amo... você, papai, até mesmo Isabella. Amam-me também?

    A pergunta foi inocente. Morgana tinha uma ideia de "amor" formada apenas por suas leituras. Jamais tivera uma conversa com alguém sobre o assunto.

    A mãe demorou a responder algo. Deu um suspiro cansado e levantou-se para buscar as toalhas da filha da mesma maneira que fazia para a rainha quando ainda era uma criada em Pendiham.

    A menina se levantou da água ainda morna apenas quando a mãe estava praticamente ao seu lado. A rainha envolveu a filha com uma toalha e afastou-se um pouco, deixando claro que não a ajudaria dali para frente.

— Eu gostaria de amá-la hoje como amei um dia, Morgana. Ou como amei ao seu pai ou teu irmão que... - parou de falar, notando a sinceridade excessiva.

— Irmão? - a menina estava surpresa - Deu outro filho ao meu pai?

    Anna olhou-a da forma que Morgana mais odiava, em um misto de irritação e piedade. Disse apenas:

— Isso não é assunto para o momento.

    Depois disso, se retirou do quarto, deixando a menina sozinha com os próprios pensamentos.

Antes da EternidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora