XXII - A Voz

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     "Três dias" significava, literalmente, três vezes o esconder do sol. Eram duas noites.

    Durante a primeira delas, Morgana imitou perfeitamente um dos comportamentos do pai: trancou-se na biblioteca de Santhomé e ficou durante horas observando a paisagem detrás dos vidros e pensando no que acontecia e no que viria a seguir.

    Gabriel a desobedecera, mas aceitara tudo aquilo pelo que ele nobremente julgava amor. E se descobrisse que ela já não sentia? Que já não o amava? E o que era pior para ela que agora, como a mãe, tornara-se um ser egoísta: e quando ele deixasse de amá-la? Pensamentos assim dominaram-na até quase o nascer do sol e ela apenas se permitiu descansar longe de importunos quando soube que Gabriel procurava por ela antes das primeiras horas da manhã.

    Em seus aposentos escolheu já uma adaga, jóias e um vestido que usaria na cerimônia. Depois adormeceu.

— Será menos gloriosa e mesmo de menor tamanho que a sua, Morgana... - a mãe revirava alguns papéis sobre a escrivaninha enquanto falava com a menina que, atirada em uma poltrona, lhe questionava o que deveria fazer – Seria desrespeitoso com o povo fazer algo tão grande para um homem. – Neste momento ela levantou os olhos para a filha – mesmo que ele seja meu filho e seu amante.

— Ele deixará de sentir, certo? – perguntou, desanimada.

— É o preço que pagamos.

— Mesmo que eu não sinta a maior parte do tempo, quando estou perto dele, sei que ele me ama... e posso até amá-lo longinquamente em alguns momentos – falou pensativa – Imagino se isso não me fará falta.

— Hora ou outra ele vai morrer, se continuar humano. E perderá a sensação que o amor lhe dá, de qualquer forma.

— Eu poderia aproveitá-la por algum tempo... - retrucou.

— Morgana, pense. Por não ter um fim, o tempo para nós passa mais rápido... ao menos tem a sensação de passar. Eles têm uma vida limitada, precisam correr para realizar tudo o que desejam em uma pequena janela de tempo. Não importa o quanto aproveitasse, não seria o bastante.

    A menina bufou contrariada, mas depois sorriu.

— Acho que pelo menos poderei aproveitar esses momentos quando nos alimentarmos.

— Sim! – sorriu – Como eu e seu pai.

    A menina manteve o sorriso mais por hábito do que realmente por "sentir" alguma felicidade. Anna, por sua vez, ficava satisfeita por melhorar, por assim dizer, as reações da filha em relação à futura tarefa.

    A princesa estava inquieta. Da cama passou à harpa, da harpa à biblioteca, então voltou à cama.

    Embora em sua cabeça tudo estivesse resolvido, ainda sentia certa insegurança. Parecia crer plenamente que alguma coisa em tudo aquilo daria errado. Que, na realidade, não era a coisa certa a ser feita, assim como também parecia negar esse pensamento tão veementemente que lhe parecia irreal, talvez mesmo impensável.

    Ao levantar-se da cama pela segunda vez naquele final de tarde, Morgana, mais uma vez, foi até sua harpa. Por um tempo considerável dedilhou-a apenas. Uma melodia triste, tão triste por si só que não parecia necessitar ser letrada para expressar seus sentimentos.

    Quando Isabella entrou no quarto, levando para a princesa o vestido que usaria na cerimônia, não foi notada. E fez questão de permanecer em silêncio para não atrapalhar sua senhora e poder continuar, assim, a prestigiar sua música.

    A menina parou quando, incompreensivelmente para ela mesma, lágrimas brotaram e passaram a escorrer abundantemente de seus olhos. Atordoada levantou-se e voltaria para a cama se, espantada pela presença da dama de companhia, não houvesse estacado no meio do quarto.

— Espero sinceramente não tê-la atrapalhado... - desculpou-se em um sussurro enquanto repousava o vestido em uma cadeira.

Et non morieris! Post mortem moriar! - a voz que saía da boca da menina não parecia ser dela. Os olhos, arregalados, revelavam que ela mesma não entendia o que acontecia.

— Perdão? – Isabella parecia confusa diante das palavras de Morgana.

    A menina balançou a cabeça como se afastasse algum pensamento e falou novamente em um tom de voz um pouco assustado e anormal para a sua condição.

— De maneira alguma – um sorriso cálido apareceu em seu rosto delicado, enquanto algumas lágrimas ainda corriam de seus olhos - É claro que não atrapalhou.

    Morgana voltou à cama e se sentou, limpando o rosto delicadamente e mantendo o sorriso nos lábios. Isabella sentou-se ao lado dela e admirou-a durante algum tempo. Havia cuidado de Morgana desde seu nascimento e desde muito cedo tivera a certeza de que ela seria uma das mais belas mulheres daquele reino. Agora, olhando-a, tinha esta certeza. Morgana tinha atributos que a faziam, ainda humana, superar já então a beleza de Anna. Depois de se juntar aos Seres da Noite a aparência de Morgana parecia ainda mais perfeita e quase surreal. Atraía olhares facilmente e, internamente, Isabella invejava aquilo.

    Tinham quase a mesma idade quando foram transformadas, mas Morgana, a menina a quem ela mesma criou e viu crescer, superava-a em todos os aspectos, embora tivesse a consciência de que sua própria beleza não fosse pouca.

    Como quando era apenas uma menina, Morgana deitou-se no colo da criada que passou a acariciar os sedosos cabelos negros e ondulados de uma forma quase carinhosa.

— Não está preparada?

— A verdade é que eu não queria estar... - respondeu a menina de olhos fechados – Algo em mim diz que Gabriel deve ir... sem mim... que agora, assim, não tenho o mínimo direito de prendê-lo aqui.

— Bobagem, princesa. Terão o direito de desfrutar juntos da eternidade.

— Eu... - a voz dela vacilou – Nunca desejei ser eterna.

— Mas ele desejou.

    Neste momento Morgana pareceu perder todo e qualquer indício de um humor agradável ou humanamente sentimental. Tirou a cabeça do colo de Isabella e, ainda gentilmente, pediu para que a deixasse sozinha, pois tinha muito no que pensar.

    A ordem foi obedecida de imediato e a menina voltou à cama, onde se deitou uma vez mais e, com os olhos perdidos no vazio de seu teto, esperou o tempo passar.


Antes da EternidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora