4

234 28 12
                                    

Demorei a ir embora depois do café da manhã no hotel porque às 7am tem muita gente na rua, a maioria com tanta pressa que esquece os modos e acaba causando frustrações e abusos demais. Eu só saía mesmo na hora que tinha que sair quando estava no mesmo estado de espírito que essas pessoas. O olho por olho da CPTM e da SPTrans de todo dia vale até mais ou menos nove da manhã, mas entre oito e oito e meia eu já podia entrar na estação sem sentir impulsos assassinos, eu pegava o contrafluxo. Na verdade é assim: das 6am às 8am não tem pra ninguém, tá tudo tão cheio que você tem medo de morrer não importa em qual vagão entre. Depois disso o contrafluxo, pegar um trem sentido bairro, fica menos desesperador. Calculei que só precisaria embaçar no refeitório até o pessoal do marketing chegar.

Odiava aquelas garotas, as do marketing. "Quando eu trabalhava na Alemanha..." e mais outras baboseiras. Não finjo estar impressionado quando vejo que a pessoa está tentando se exibir. Luigi tem essa mágica nos papos sobre suas viagens que me faz listar na cabeça os lugares que preciso visitar um dia, mas só ele sabe fazer isso sem parecer um idiota, que eu conheça.

Antes que eu pudesse perceber já eram oito e vinte e cinco e eu já estava mais do que pronto para ir embora.

O calor batendo direto na minha pele fazia toda a diferença, o sol era mesmo um antidepressivo natural. Vi muita gente saindo da estação bem rápido, acho que atrasados. Olhei pra eles, nos rostos deles. Eu morria de vergonha de andar na rua, no meio de gente. Ser vestibulando me colocava num lugar abaixo deles, e era visível na minha cara. Mas eu já não me sentia mais um vestibulando, pelo menos isso.

Não queria ter chegado em casa naquele dia.

Estava tudo tão cheio de luz. Uma coisa rara. O sol no concreto brilhava tanto que meus olhos ardiam e era difícil mantê-los abertos. Escorriam lágrimas como se estivesse chorando.

Havia uma garota no trem. Não conseguia ver seu rosto, estava curvada em cima de um livro. Só conseguia ver seu cabelo: um vermelho perfeito – se não fosse tão cedo teria o palpite de que ela havia acabado de colorir no salão. Lia um livro que não consegui identificar, estava encapado. Essa foi a coisa que me intrigou: ele estava encapado com papel pardo. Ela levantou o livro do colo – eu a via de frente, – jogou a cabeça para o lado para afastar a franja e o segurou à frente do peito. De vez em quando a via dar um riso envergonhado e não pude saber se era por causa da história ou por causa de alguma coisa que ouvia nos fones de ouvido.

Me imaginei ao lado dela.

A luz do sol naquela cabeça vermelha era simplesmente celestial. De repente a vi dentro da minha casa, nós dois dançando alguma música e pude ver seu cabelo balançando e espalhando vermelho pra todo lado. Ela me lembrou um poema vermelho com estrofes vermelhas e uma beleza vermelha que precisava ser minha. Eu precisava coletá-la para mim, ter sua foto na minha lista de contatos. Imaginei como seria sua voz e as fotos que tiraríamos lendo o mesmo livro ao mesmo tempo: o do papel pardo. Agora percebo que aquele era um poema que deveria ter escrito bem ali. Talvez até devesse ter pedido para saber seu nome (imaginei que fosse Natasha). Agora, apesar de me lembrar daquela magia toda, não possuo um grama de vontade de pôr no papel qualquer sentimento relacionado àquele dia, mesmo o de felicidade que passei naqueles minutos antes de ela descer na Granja Julieta. A sensação de "eu tenho o que você precisa/você tem o que eu preciso" que nutro por alguns estranhos consegue me aquecer bastante.

Às vezes me imagino dançando músicas que nunca ouvi com pessoas que não conheço. Elas estão lá, as pessoas, as músicas também, e são maravilhosas. Vejo nossos reflexos na parede espelhada e pasmo de felicidade.

Eu definitivamente não queria ter chegado em casa naquele dia.

Você pode pensar que a arte surge daí direto para a criação. Às vezes a gente não quer fazer das tripas coração, porque não há coração pra fazer. Às vezes só queremos não sentir a mesma coisa duas vezes, seja boa ou ruim. É como quando a gente percebe que pode tirar uma foto de um momento: escolhe se tira ou não, depois tem que viver com isso.

O GabaritoOnde histórias criam vida. Descubra agora