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Uma vez estava dentro da sala 01 pegando umas impressões quando vi duas mulheres correndo, uma atrás da outra. Lembro da cena como se ainda estivesse lá.

A porta era listrada de adesivos foscos, não era uma visão privilegiada do que acontecia do lado de fora. Lembro de notar os cabelos delas balançando de um lado para o outro, na altura dos ombros. Elas pararam e ficaram se encarando, igual a bichos rivais quando estão pra atacar. Reconheci uma delas, Sora, do comercial, era a que vinha atrás.

A outra mulher tinha um daqueles headsets com microfone, chamávamos de mic Madonna, e ela estava virada pra mim, Sora estava de costas para a porta com as mãos levantadas e abertas perto do peito, como se estivesse pedindo desculpas. A de headset devia ser a cliente.

Não lembrava quem era, naquela época eu ainda era meio desprezado por ser assistente, só servia pra tirar cópias e passar recados.

– Tira aquilo de lá! – ouvi a mulher gritar.

Não foi um sonoro comum.

Ela gritou como alguém mau grita com bicho na rua. Senti aquele calor da vergonha misturada à curiosidade e perdi toda noção de movimentos que tinha – quando voltei ao meu estado lúcido estava numa posição estranha olhando pelas frestas dos adesivos da porta. Os olhos da mulher estavam furiosos. Sora estava muito bem arrumada pra quem não costumava nem pentear o cabelo, de uniforme novo e tudo. A cliente se inclinou pra ela em ameaça e apontou o dedo. Ouvia a voz trêmula de Sora, mas até hoje não faço ideia do que ela estava falando.

– Cala a boca. Para de falar. Para de falar.

A cliente gritava e fazia gestos, uma hora balançou a mão tão perto do rosto de Sora que fez mexer sua franja.

– Só tira aquilo de lá. Agora. Cala a boca.

Havia mais gente em volta, funcionárias do hotel, estavam atrapalhando minha visão. A cliente olhou bem perto de Sora e disse, tão alto que pude ouvir o limite de sua voz pela rouquidão no final: "Não interessa! Tira aquilo de lá AGORA! EU MANDEI TIRAR!".

Isso poderia muito bem ter ecoado no prédio todo. Ela continuou gritando "EU MANDEI TIRAR!" com o rosto colado no de Sora, brilhando de suor e ódio e imaginei que seu hálito fosse tão horrível quanto ela também. A cliente saiu andando com pressa e Sora não se mexeu, ficou lá, muda e sem reação. As pessoas que estavam em volta desapareceram. Aquilo para mim foi tão aterrorizante que comecei a chorar de medo.

Nunca pesquei a notícia inteira, mas o fato era o seguinte: um totem de madeira com informações sobre o evento foi colocado próximo ao elevador da entrada do prédio. Ela não queria aquilo, mas já estava lá. Toda aquela cena de submissão deu à cliente a permissão que ela precisava para tratar a funcionária do hotel que nem lixo.

Passei meses observando Sora. Minha missão era vê-la sorrindo, se a visse sorrindo então o mundo estaria certo de novo, caso contrário teria que fazer amizade com ela pra que eu mesmo pudesse fazê-la sorrir. Eu acreditava que, só vendo no rosto dela que ela já havia superado aquilo, eu poderia superar também.

Não me lembro se a vi sorrir.

Conheci muita gente peculiar nos meus empregos. Acho isso encantador para um currículo: "atendimento a todo tipo de público". Sim. Nunca vi gente mais fodida. Aquele era o lugar onde eles se reuniam para fazer eventos. De vez em quando via pelos corredores uma Solange da Master ou Vinícius da Magic que eram conhecidos por serem extremamente grossos e incompreensíveis, mas nunca havia topado com um deles, sabe, de ter que falar algo além do meu nome ou dizer que eles não poderiam fazer algo (havia treinamentos que nos ensinavam a falar não aos clientes sem deixá-los sensíveis). Havia lendas de que coordenadores já saíram na porrada com clientes por brigas daquele naipe.

Quando entram num estabelecimento essas pessoas têm a estranha sensação de poder sobre os funcionários e em vista de um problema administrativo ou comercial jogam a ira em cima do caixa ou do recepcionista, se desculpando logo em seguida com a famosa "desculpe ter me exaltado/sei que você não tem nada a ver com isso". Não. Seria o mesmo se o caixa dissesse "vai se foder" e depois dissesse "oh, senhor, desculpe ter me exaltado"? Claro que não.

O cliente acha que qualquer dano emocional que ele vá te causar já está pago, que ele fez esse depósito assim que fechou negócio com a empresa que te contratou, no meu caso o hotel. A partir daí o laço é estranho: ele exige de você coisas quase mágicas, mas é você que tem todo o poder, você que faz setenta nomes no power point e os imprime em papel de carta e os dobra em prismas de mesa em menos de meia hora quando a agência descobre que virão mais convidados do que o combinado.

Lembro que no dia dessa confusão com a Sora um dos coordenadores reparou na minha barba malfeita.

– Quer ser o próximo a tomar uns berros daqueles? – ele disse.

Me deu um riso simpático, mas eu sabia que era falso, aquele tipo de riso amarelo que as pessoas te dão depois que te insultam. Deve ser uma habilidade especial. Tanto dar um quanto identificar um.

Ele foi demitido um tempo depois, não me lembro por quê.

No manual, naquele lindo data show que sempre parece ter sido desenhado para analfabetos funcionais, há um slide sobre a barba: você não pode deixar crescer. Na minha "integração" pra ser mais específico, havia uma foto do Keanu Reeves com um grande X vermelho na frente, nossa orientadora disse que tínhamos que fazer a barba todos os dias. "Não tem jeito, meninos" ela disse, "homem tem que fazer a barba todos os dias, porque o rosto tem que estar sempre limpinho, sempre lisinho. Um dia só já faz toda diferença, por isso que os homens têm que fazer a barba todos os dias. O cabelo também tem que ser curto, quando você vir que os fios passam a gola da camisa, na nuca, sabem..." ela se virou e mostrou a gola da sua camisa e puxou o cabelo por cima dela. Apesar de ser bem curto, passava um pouco. "Eu sou menina," ela disse e soltou um riso falso, "então eu posso, né, mas os meninos têm que ficar atentos a isso."

Para os trabalhadores menores como eu o mundo corporativo é só um regime militar sofisticado.

E alguns clientes se aproveitam disso. E depois existe aquela clássica "você está aqui representando uma empresa" que eles sempre soltam pra justificar o tratamento, pra que você não leve pro "lado pessoal".

Você não está falando com uma empresa, você está falando com uma pessoa. Você sempre está falando com uma pessoa. Você nunca está falando com uma empresa, achar que está é a maior baboseira do universo. Toda vez que me lembro da cena com a Sora tento me colocar em seu lugar e não consigo. Não consigo me imaginar dando um murro na boca da cliente, mas também não me imagino superando aquilo de forma pacífica. Uma briga me custaria o emprego. A cliente continuaria cliente e pagaria R$ 500.000 pelo evento enquanto a pedra no caminho – eu. E o totem também – estaria fora de cena.

O poder que ela tinha sobre Sora infelizmente não era imaginário. Era real. Não há maneira de se colocar no lugar de alguém que não consegue se colocar no seu. Afinal, sempre cabe a uma parte humilhar a outra.

Sempre vivi esperando que a minha cena de Sora/cliente acontecesse. Armava minha mais poderosa carranca e passava pelos clientes sem olhar para eles.



NOTA DO AUTOR 

Sorriamos em homenagem à Sora.

Mais uma vez agradeço o carinho e as leituras. Se gostou não deixe de votar, por favor. E de novo como agradecimento já adianto um pouquinho do capítulo da próxima quinta-feira:

Teremos muito mais Cissa.

Já vale a leitura, né

Nos vemos na próxima quinta, 23/03, um grande abraço e um sorriso.

Douglas

O GabaritoOnde histórias criam vida. Descubra agora