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Eu lembro desse dia todos os dias.

Fico pensando no cheiro de podridão e na sensação azeda e refrescante do fedor e depois no vento e depois na queimadura de bater meu corpo no metal quente, meu pobre corpo. E imagino quem eu era antes daquilo, não consigo nem fazer um mapa adequado das horas para saber o quanto minha vida mudou e quanto tempo demorou para acontecer. E o que eu teria feito para merecer um desastre daquele tamanho, e se talvez não pudesse ter aprendido o que aprendi através de acontecimentos mais simples e menos ousados. Foi um dia que alterou toda a musculatura da minha vida, totalmente levado por impulsos meus e dos outros, às vezes penso que chorei demais, poderia ter sido menos patético e enxergado as coisas com uma visão melhor sem aquele monte de lágrimas desnecessárias nos olhos. Como uma vida tão desinteressante ganhou assim, de bandeja, um dia desses?

E depois os músculos se atrofiaram de novo, foi só um breve alongamento para uma corrida e depois eu não era o mesmo, mas continuei vivendo a mesma vida.

E teria sido melhor se o dia não exigisse tanto que eu explorasse a beirada, mas ainda bem que foi como foi.

E das opções abaixo podemos concluir que:

a) A formatura aconteceu e o casamento não

b) O casamento aconteceu e a formatura não

c) Ambos aconteceram, porém só estive em um

d) Eu saí ferido

e) Todas as anteriores

Resolução:

Acordei cedo e tomei café, um grande erro, meu estômago não queria ser incomodado. Não sentia vontade de chorar, só sentia vontade de viver o dia até acabar, afinal eu mesmo o idealizara de trezentas formas e estava ansioso para ver se alguma delas seria a real.

Tomei banho cedo também, suaria um pouco por causa do ônibus, mas tudo bem. À medida em que as horas passavam meu estômago também rejeitava a ideia de almoçar, então pulei uma refeição.

Olhei a previsão do tempo: calor e pancadas de chuva à tarde. Talvez devesse sair mais cedo que o planejado. Nenhuma mensagem de Cissa nem de Luigi, o convite havia chegado apenas um dia antes, num envelope azul enorme com o meu nome. O terno em cima da cama, eu pelado pra lá e pra cá dentro de casa para arejar o corpo melado de desodorante.

Desci na Av. Santo Amaro e tive que olhar no mapa da parada para achar o caminho que dava na faculdade. Sair da avenida principal era como entrar em uma cidade desconhecida. Ruas planas, muros floridos e comércios que tinham cara de prósperos. Pra mim, na verdade, em São Paulo, só impressiona se não enche d'água quando chove.

Suei mais do que esperava, mas esse era o efeito de andar sozinho por aí em um traje mais sofisticado. Me sentia bonito, não como quando era pequeno, mas era bom.

Mas me sentir bonito não me isentou da ânsia. Imaginei se não encontraria o amor da minha vida em um desses eventos, na verdade estava contando com isso, era o que mantinha minha cabeça ocupada. Esse era um sentimento secreto que tinha muita vergonha de partilhar: estava o tempo todo procurando, sendo alguém de outra pessoa. Nunca encontrei o "você" que tanto ouço nas músicas e jamais serei pego desprevenido pelo amor, pois nunca estou despreparado para ele. Estou sempre vendo a pessoa do banco da frente no trem, sempre espreitando se me viram sair do ônibus, se viram o que deixei mostrar, se havia alguém no cursinho, e se eu teria a habilidade de me encaixar com alguém. Não existe remédio contra isso.

Sempre acreditei que encontraria o amor da minha vida na faculdade. Talvez fosse por isso que nunca tinha encontrado ninguém.

Achei o prédio. Micro-ônibus passavam, imagino que em direção ao terminal ou à avenida principal, fazendo a ligação de quem morava mais longe. Havia uma aglomeração, mas passei por eles sem perguntar se era aquela mesmo a entrada. Ao lado das catracas havia uma moça com um crachá, não me lembro do nome, mas foi simpática.

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