Todo mundo tem um pecado próprio. Cresce junto, da infância, tem em todo o seu corpo e você não se sente culpado por ele, você é acostumado a ele.
O meu é a inveja.
Começou leve: quando era pequeno sempre tive inveja dos brinquedos dos outros, não de todos, me refiro às coisas que eu quis e que outras pessoas acabaram tendo.
Meus tios tinham uma casa perto do shopping Interlagos, dava para ir a pé. Imaginar que existia um lugar onde se dava para ir a pé ao shopping era a coisa mais maravilhosa para mim, lembro que sempre pedia que alguém fosse comigo, não porque quisesse mesmo comprar algo lá, mas porque a caminhada era um pico muito alto de felicidade. Fiquei triste quando meus pais me contaram que eles tinham se mudado. Mas tinha goteiras, minha mãe me disse. Minha tia tinha que colocar panelas e baldes pela casa embaixo das goteiras quando chovia. A casa era toda aberta, tinha dois andares e uma oficina na garagem para o meu tio. Ir ao Playland não era tão divertido quanto só ficar lá, estar lá, fazendo nada mesmo, só estando lá. A única casa na vida que vi que tinha papel de parede.
Eles tinham acabado de colocar uma coleção de carrinhos na estante, menores do que a minha mão na época. Chovia e os baldes estavam pra todo lado, o papel de parede, para minha imensa tristeza, começava a descolar, o que fez com que minha tia começasse a puxá-lo com a mão, revelando uma parede horrorosa por trás. Lembro como se tivesse acontecido há cinco minutos: eu estava no colo dela quando vi o Batmóvel e fui com minha mão pra cima dele. Levei um tapa na mão e minhas tripas ferveram de vergonha e imediatamente segurei o choro para não parecer fraco. "Não pode mexer, Ciso" ela disse.
Roubei o carrinho quando ela não estava olhando.
Meus pais receberam uma ligação de minha tia quando chegamos. É claro, como a criança idiota que eu era, já tinha dito a eles que ganhara a miniatura de presente e estava feliz pela casa passando-a pelos móveis. "Pra conhecer a nova casa" eu disse. Logo que ligaram os pontos levei uma baita surra. Acho que "roubar" e "ladrão" foram fortes demais para eles. Se pudesse voltar no tempo calaria a boca do pequeno Ciso. "Não tô com carrinho nenhum! " e o enfiaria na boca se fosse preciso. "Podem procurar onde quiserem" e depois procuraria por ele nas minhas fezes. É difícil fazer os pais entenderem suas intenções quando criança.
O engraçado foi que apenas algumas semanas depois vi o mesmo Batmóvel, dessa vez em um estado lastimável de descuido, jogado no chão do quintal de outra tia. Seu filho mais novo, Mau-mau, havia ganhado o carrinho de presente. Acho que comecei a contar a inveja como meu pecado sem perceber a partir daí. Ele não era a criança mais propensa a ganhar alguma coisa do Papai Noel, se é que me entende. Eu não havia dado o apelido de Mau-mau para o Maurício à toa. Não consigo me lembrar se cheguei a perguntar a algum adulto por que deram o carrinho a ele, ou se contei pra alguém que aquilo havia criado um buraco enorme em mim, mas acho que não, quando você é criança e questiona uma coisa dessas sempre recebe patadas do tipo "e por acaso não te damos tudo que você quer? ". Eu podia não ser a criança mais esperta do mundo, mas tomava um imenso cuidado com o que falava perto dos adultos.
Entenda, eu não invejava os pais do Maurício, sua vida ou qualquer merda que ele pudesse ter naquela coisa que chamava de cabeça. Eu invejei algo que ele teve e que eu não tive, somente isso.
É assim que funciona para mim.
Eu invejava a vida universitária, coisa que hoje mesmo ainda não sei o que é. Pode ser que não haja nela nada do que penso haver, mas a fantasia era, é, sensacional.
A quinta tentativa foi o mais próximo que eu cheguei de ter essa vida.
Eu usei todo o meu dinheiro no cursinho da manhã, que era o mais caro. Não se tratava mais de inteligência ou de leitura e interpretação de texto e exercícios. Era espada e escudo e batalhas diárias contra o sono e contra as matérias que eu não me sentia obrigado a saber.
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O Gabarito
General Fiction1 candidato; 5 vestibulares; 5 falhas; 1 acerto. O livro conta a história de Ciso, um ex-vestibulando (podemos chamar assim?) que se vê em uma situação difícil logo após a reprovação no vestibular. Pela 5ª vez! Para ver o sentido por trás de 5 vesti...