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Fui chamado para uma entrevista em uma editora uma vez.

Era assim que eu descobria a cidade, mandava currículos online e ia a entrevistas.

Fui até Osasco de trem e de lá peguei aquela linha que se arrasta até a Barra-Funda. Depois peguei uma condução e até hoje não sei em que mundo desci, mas só depois desse dia comecei a enxergar que São Paulo era bem maior, não era só Santo Amaro, Vila Mariana, Ibirapuera e Av. Paulista, que até esses dias, os dias de currículos e entrevistas, eram os lugares onde eu sempre precisava estar, trabalho e cursinho, sair dessa parte do mapa sempre me dava medo.

Eu procurava por uma "editora gráfica", era o que tinha entendido pelo telefone. Imaginei uma lan house, um galpão meio underground de aluguel caro e dono excêntrico. Imaginei universitários desesperados por impressões de trabalhos, papel timbrado, essas coisas.

Infelizmente tinha anotado o endereço errado. Não havia nada naquela rua a não ser um prédio comercial de número bem diferente do que eu tinha e ruas gigantes que davam medo de atravessar. Eu estava adiantado, mas mesmo assim corria o risco de perder a hora.

Esperei cruzar o caminho com alguém para poder pedir ajuda. Essa parte foi mais dolorosa do que pareceu ser, detesto ter que falar com gente na rua, já estava decidido na minha cabeça que iria embora sem fazer a entrevista no fim das contas. Se contasse até cinco e ninguém aparecesse eu iria embora.

Um. Dois.

Que viagem longa pra nada, talvez achasse um shopping no caminho e parasse pra comer um sanduíche enorme pra compensar o fracassado que eu era.

Três.

Já andava na direção de volta ao ponto onde tinha descido, notei que um senhor vinha em minha direção, infelizmente.

Quatro.

– Senhor? – perguntei. – Boa tarde! O senhor conhece alguma editora gráfica por aqui?

Ele sorriu para mim e olhou para o lado.

O prédio comercial do outro lado da rua. Apesar da numeração diferente o nome na fachada era Editora Exata.

Exata, não "gráfica". Não era uma lan house chique, mas uma editora de livros. A vaga era para assistente de recepção, segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, possibilidade de crescimento e seja lá o que mais que "plano de carreira" significasse.

Lá dentro fui atingido por uma euforia muito grande. Grande de tamanho mesmo, não cabia dentro de mim, suava, sorria um pouco, depois tomava um gole de água para disfarçar. Tinha tanta certeza de que aquela vaga seria minha que nem percebi quando ouvi o termo dinâmica em grupo.

Se ao menos tivesse conseguido contar até cinco antes que aquele senhor passasse por mim.

– Vejo aqui, Luana, – disse o entrevistador. – que você trabalhou nessa empresa de buffet por seis meses. No varejo de moda por dois meses e no telemarketing por... oito meses? Como você espera que eu acredite que você vai durar mais aqui do que nesses outros?

Olhei para Luana. Havia mais ou menos dez meninas e eu, mas o cara, Daniel, ainda entrevistava a segunda delas e eu já estava impaciente.

– Então... – ela cutucou o esmalte das unhas. – Pela experiência que eu tenho espero que possa ser escolhida para a vaga que a empresa está oferecendo.

Ele anotou alguma coisa no currículo dela. Daniel era bem alto, tinha uma voz grossa e cheia de desprazer, acho que vestia uma camisa branca e calça jeans.

– E... Se você fosse um animal, qual você seria, Luana?

A entrevista era às 14h, ou seja, saí de casa por volta de meio dia. Não consegui almoçar por causa da ansiedade e estava morrendo de vontade de ir ao banheiro por causa da água que tinha tomado antes de irmos para a sala da dinâmica. A cada minuto ali minha juventude era sugada de mim.

– Posso ir ao banheiro? – perguntou uma candidata.

Daniel olhou no relógio e fez que ia responder, mas acabou que só fez que sim com a cabeça e perguntou o nome da garota. Quando ela saiu ele buscou nos papeis da prancheta o que imaginei ser o currículo dela, o qual ele havia marcado, imaginei, por propósito de desclassificação.

Permaneci quieto.

– Uma pantera!

– Uma pantera? – ele repetiu. Tomou um gole de água da sua garrafa.

Todas elas: borboletas porque passam por metamorfose; tigres porque são ferozes e dedicadas; águias, pois são leves e vivem bem com a natureza. Meu Deus do céu, alguém entra aqui com uma arma e me mata primeiro, por favor.

Bocejei. Talvez um pouco forte demais, pois chamei alguma atenção.

– Por que não passamos então para o senhor Narciso, único homem aqui hoje, afinal ele parece bem entediado.

As respostas que imaginei depois foram maravilhosas. Por que único homem? Você é secretamente uma mulher? Sim, tô entediado pra caralho de ouvir você falando esse monte de merda! Aliás, não sei quem é pior: você ou elas!

– Senhor Narciso, qual animal o senhor seria?

– Um cachorro.

O silêncio foi mais constrangedor do que imaginei. Na verdade, estava ensaiando minha resposta mentalmente o tempo todo, mas não contei com aquilo, com a desaprovação geral.

– E por que o senhor seria um cachorro, senhor Narciso?

– É o mais próximo do que eu sou agora, de verdade. Se você tivesse perguntado que animal eu queria ser eu diria um golfinho, por causa da capacidade cerebral e tudo.

Ninguém disse nada. Me olhavam meio que esperando que eu continuasse ou só dissesse que era tudo brincadeira e escolhesse outro animal. Comecei a ficar quente de vergonha.

– Eu gosto muito de muita gente – continuei. – mas não sei explicar por que eu não gosto de quem eu não gosto! Eu sou fácil de ser treinado e me apego a muita gente e sou leal. Leal como um cão, acho que é por isso que eu seria um... um cachorro.

Parei de olhar nos rostos das pessoas, estava com vergonha demais de imaginar suas expressões para confirmá-las. Daniel anotou alguma coisa, mas não me falou mais nada a não ser um "tchau e boa sorte" quando a dinâmica terminou.

Não passei. No fim das contas a história toda me deu muita sensibilidade para enxergar as baboseiras das pessoas e o quanto os entrevistadores acreditam nelas. Podia apostar que era o único que disse a verdade sobre o animal que seria, mas ele preferia ouvir – e contratar – as panteras.

Aprendi que eu era um cão leal no meio de um monte de animais falsos, mas de alguma forma foi ali que também aprendi que as pessoas preferem os animais falsos.

Já tive que responder a essa pergunta algumas outras vezes. Sempre a mesma resposta, pois o que aprendi sobre mim mesmo naquela entrevista foi muito importante para se tornar uma mentira só para impressionar outra pessoa.






NOTA DO AUTOR

bloguinho do autor: obrigado pelas leituras, já temos mais de mil, nossa historinha cresceu, está só a 7 capítulos do fim e eu já tô sofrendo, mas prometo estar fazendo o meu melhor. Obrigado.

Um pouquinho do próximo capítulo, 16º, próxima quinta-feira, 25/05:

Continuamos a história de onde ela parou no capítulo 14: Ciso vai pra casa depois da noite de trabalho em que seu gerente Dino o disse que ele seria demitido no dia seguinte se comparecesse à reunião operacional. Ele vê uma cena muito triste no caminho, e vê a si mesmo nessa cena. Quando chega em casa toma uma decisão sobre o que fazer com as provas e apostilas espalhadas.

E pira de vez!

Um enorme abraço

Douglas

O GabaritoOnde histórias criam vida. Descubra agora