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"Suas qualificações, seu CV, não são a sua vida, apesar de que você encontrará muitas pessoas da minha idade e mais velhas que confundem os dois. A vida é difícil, complicada e além do controle de qualquer um e a humildade de saber disso te habilitará a sobreviver às suas vicissitudes."

J. K. Rowling

"Não existe passar ou ser reprovado em ser uma pessoa"

Neil Gaiman

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As noites. Só depois que mudei para o turno da madrugada que comecei a dar valor para uma noite normal, aquela que a gente deita e dorme junto com todo mundo do prédio. O sono durante o dia era diferente, mais mecânico e mais calculado. Quando acorda no meio da noite você faz xixi e volta a dormir, mas de dia é diferente. Meu apartamento não é isolado de som ou luz, portanto acordar pra fazer xixi se torna acordar, há passos no teto e carros entrando e saindo da garagem. Eu também não fazia ideia de que daria pra ouvir até o elevador, o assobio insuportável que ele faz quando alguém está bloqueando as portas e aquele chiado de subindo e descendo que parece nunca ter fim. De cima, ouvia um cachorro com as patas no piso, sem carpete, ele raspava as unhas no chão e sinto meu maxilar arder de agonia de lembrar. Lá fora, mais lá fora, alguém joga bola e de repente estaciona um carro na garagem com o som alto e é uma música que eu gosto. Eu tomava um ou dois comprimidos de vez em quando. Apelei para o chá de capim e de erva-doce, mas nunca gostei de chá e não fazia efeito algum. Tudo se atrapalhava até mais ou menos 18h, quando o sono batia de novo e eu era obrigado a tirar um cochilo infeliz. Às 22h eu saía de casa e descia a montanha até a estação. A ladeira até o metrô Campo Limpo era meu desafio diário: subir a montanha de manhã, ao voltar do trabalho, e descê-la à noite, o mais rápido que não fosse correndo pra sempre pegar o trem na mesma hora. Subir era pior, eu chegava na entrada do condomínio ainda com o corpo inclinado.

Quando estava de folga, subia aquilo como se estivesse pra receber um prêmio. Eu chegava em casa e fazia o máximo pra não dormir de dia, e nesses dias eu não reparava em nenhum barulho, pois não estava tentando dormir. Quando chegava dez da noite eu já estava dolorido de sono, desligava o celular pra não haver chance de ninguém me ligar e eu fazer a merda de atender e fechava tudo, o lugar ficava num frescor sobrenatural. Eu costumava ter medo das noites, de dormir sozinho e de ficar no escuro. Antes de mudar de turno (eu não sabia que ia), comprei um cordão de luzes à pilha e deixei em uma prateleira no meu quarto, afinal já não dormia bem por causa dos pesadelos e o cordão seria minha luz noturna, porque acordar de um pesadelo no escuro é a mesma coisa que não acordar. Ele agora era o símbolo de um ritual: quando ligava, o santuário estava pronto. Eu deitava na cama e sentia o sono formigar todo meu corpo até que acontecia, eu ouvia um pequeno estalo, os ossos se soltavam e os músculos amoleciam e eu estava derramado na cama, era quase como se houvesse significado na palavra descanso. Um ritual que aprendi na sorte.

Mas, como todo ritual que aprendemos na sorte, como aquele lugar no ônibus que você sempre quer pegar vazio, aquela fila que você aprendeu milagrosamente a não precisar pegar, chega o dia em que ele é arruinado.

O meu estava acontecendo.

Aqui está a história: eu não entrei na USP. Cinco vezes. Essa era a quinta e última tentativa e infelizmente, desde janeiro, meu nome não estava em nenhuma das listas de aprovados. A última havia sido divulgada naquela manhã e eu tentei passar o dia fingindo que já sabia, mas o primeiro sinal de que não estava tudo bem chegou quando acendi meu cordão de luzes antes de dormir: as pilhas falharam e ele se apagou.

O GabaritoOnde histórias criam vida. Descubra agora