Tivemos uma peça na pré-escola uma vez, a professora sortearia os papeis. Nunca fui de interação antes do ensino médio então achei uma droga sem tamanho, só que tinha um segredo: eu queria mais do que tudo ser o personagem principal, ao mesmo tempo em que não queria participar de jeito nenhum.
Era algo bem básico, nada de Shakespeare, seria o livro preferido da nossa professora, infelizmente vou ficar devendo o título e o nome do autor.
Havia esse garoto, Charles, que tinha nascido com um pequeno defeito, ele era água! Nas ilustrações, era só um garoto bem branquinho igual a um boneco de neve e a história dizia que ele tinha pele e unhas e cabelo como uma criança normal, mas não podia ser exposto ao calor, ou se derreteria todo e não seria mais nada a não ser uma poça d'água. Por conta disso sua mãe e seus criados, o caseiro e sua filha Ria, foram morar nas montanhas.
Ele se apaixona por Ria, e é claro que ela também se apaixona por ele, e o garoto se desfaz um pouco por vez até que chega o dia de contar à Ria sobre sua condição. Antes que ele consiga dizer algo ela o beija.
Imediatamente, por ter quebrado toda a temperatura mágica dele, Ria dispara um alarme e seu pai a avisa que a mãe de Charles está a caminho. É só aí que ela descobre que a mãe é na verdade uma bruxa e que Charles era amaldiçoado. O garoto começa a derreter.
Ria coleta todo o líquido do chão com panos e usa panelas e potes para guardar a água.
"Não vai funcionar, " diz Charles, adivinhando seu plano. "Se eu me desfizer aqui, não poderei ser congelado novamente em outro lugar".
Ria pensa que ele está derretendo por causa do medo, talvez de estar apaixonado, os sentimentos são o que o esquentam, chegou a um ponto tão alto que ele ia se desfazer todinho. Ela então cria uma oração que reverte aquilo, e acontece que essa era a brecha do feitiço criado pela mãe na hora de tê-lo: só outra pessoa que o amasse poderia anular a magia. E a mãe achava que seria a única.
Eu implorava para ser Charles e implorava para ser ninguém no sorteio.
Fui sorteado para ser o Charles.
No dia da peça me sentia tão bonito que disse aos meus pais que era um príncipe. Eu estava com as roupas, com o chapéu e estava um pouco maquiado de branco para parecer congelado. Me sentia tão perfeito que quase pedi para minha mãe me deixar usar a maquiagem todo dia. Eu era o Príncipe Ciso.
Foi num sábado de manhã, minha família toda na minha casa, arrumados e penteados, só esperando a hora de sairmos, um milagre que nunca se repetiu. Ninguém havia se mudado de São Paulo ainda e todos foram ver a peça. E me ouviram dizer que era o Príncipe Ciso. É assim que me chamam desde então.
Acho que foi eles estarem lá pra mim que me fez sentir desse jeito.
Lembro de ter prometido à professora que um dia escreveria um livro melhor do que aquele só para ela. Nele ia estar escrito que Charles teria uma geladeira no peito para não derreter os órgãos.
Sorri com a lembrança.
O mês já havia virado. Faltavam apenas alguns dias para o casamento e para a formatura. Colação de grau, corrigiu Cissa um dia desses. Na verdade não dou a mínima para o nome de verdade. Ela fez o curso e terminou, isso é a porra de uma formatura.
Não me preocupava mais com ela, não da mesma forma. Interpretei isso como um novo estágio da nossa amizade. Já com Luigi cresceu dentro de mim uma angústia e algumas palavras engasgadas que me estufaram a cabeça. Creio que, infelizmente, não tenha podido dar exemplos suficientes que explicassem minha preocupação com a sua ausência (a qual já estava sendo treinada há alguns meses).
Não éramos tão pela metade antes. Éramos o primeiro contato da lista um do outro, brincamos de dar o nome do outro aos filhos, brincamos de coração partido um na casa do outro, brincamos de ser assaltados e chorar no telefone.
E depois brincamos de sair um da vida do outro. A parceria que consegui com ele, a quem jamais imaginei ser capaz de coletar, havia chegado ao fim.
Talvez eu fosse a parte errada. Dele e da Cissa, por isso o destino estava finalmente dando um jeito de nos separar.
Afinal eu não funciono muito bem.
Às vezes confundo as palavras, também esqueço como se escreve "seiscentos"; detesto atender celebridades e sempre me imagino dentro de uma sala de aula, mesmo agora depois de ter desistido de fazer faculdade e sempre me pego vendo mochilas em vitrines. Cento e cinquenta reais é uma quantia que jamais gastarei com taxa de inscrição para o vestibular de novo. Nunca votei em um candidato, sempre branco ou nulo, não sei por quê. Toda vez que alguém fala "sudeste" ou "centro-oeste" eu faço a rosa dos ventos na cabeça e fico tentando achar onde fica, às vezes troco leste por oeste. Também escrevo algumas coisas quando estou no auge da emoção.
Esse que é o meu currículo de verdade.
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NOTA DO AUTORbloguinho do autor: triste estou de ter que dar um spoiler do próximo capítulo e ainda ter que anunciar o fim, mas como prometido esses últimos capítulos são a melhor coisa que eu já escrevi, então agora é mostrar o que fiz e esperar pelo melhor. Quem gostou por favor não deixe de dar nossa estrelinha e obrigado por estar aqui.
Capítulo 20: A formatura de Cissa + o casamento de Luigi. (próxima quinta, 22/6)
Capítulos 21 e 22: o que acontece depois desse desastre + o fim. (29/06)
Um abraço,
Douglas

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O Gabarito
General Fiction1 candidato; 5 vestibulares; 5 falhas; 1 acerto. O livro conta a história de Ciso, um ex-vestibulando (podemos chamar assim?) que se vê em uma situação difícil logo após a reprovação no vestibular. Pela 5ª vez! Para ver o sentido por trás de 5 vesti...