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Acordei com uma ligação do hotel, acho que um pouco depois das 14h. Senti o celular vibrar como um terremoto debaixo do travesseiro. Ao ver o nome no visor senti uma dor terrível, a gente sempre acha que vai receber uma notícia trágica ou que vai transformar nosso dia num inferno e na maior parte das vezes é verdade. "Você vai ter que vir trabalhar mais cedo" é mais ou menos o desespero que me acerta quando alguém me liga do trabalho e estou fora do horário de trabalho.

Fiquei encarando o celular.

– Alô?

– Ciso, criança, a reunião com os clientes do banco começou e você não veio!

Era Dino, nosso gerente operacional. Ele estava tentando fazer uma voz de "tudo bem que você não veio, mas quero te matar".

Eu não tinha resposta para aquilo. Esqueci completamente da reunião. Mas isso não faria muita diferença, eu não iria nem que tivesse lembrado. Além de não ser obrigado a participar, tinha a desculpa de ter que estudar.

Mas eu não tinha mais aquela desculpa e eles sabiam disso.

– Eles vão estar aqui na madrugada então tente causar uma boa impressão.

Esse comentário não passou despercebido. Talvez ele soubesse do meu pequeno atrito com o cara dos óculos amarelos. Talvez esse cliente conhecesse o outro.

Não sei de onde saiu toda essa informalidade. Isso não existe. Gerentes são intimidadores e gostam de causar discórdia entre os funcionários. São calculistas e nunca conseguimos saber se os apertos de mão e os sorrisos são verdadeiros, pois são treinados pra nos iludir.

– Vou chegar um pouco mais cedo então – foi tudo que consegui responder.

– Okay, Ciso. Então bom descanso pra você. Desculpe ter te acordado.

E desligou.

Não sabia dizer se era por causa da reprovação, mas meus sentidos estavam tão aguçados. Sempre prestes a chorar, esperando que algo ruim acontecesse, sempre apontando a cara de mal para as pessoas, sempre esperando que alguém me tratasse mal. Só em casa eu me sentia protegido, a ligação meio que quebrou isso, a proteção, e comecei a ficar desesperado por boas notícias. E isso fez com que ficasse muito tempo com os fones de ouvido, mesmo dentro de casa.

Comecei a ouvir umas músicas mais alternativas. Escolhia bandas com mais de um vocalista. Não sei por quê. Talvez me sentisse mais acolhido assim, com mais gente cantando.

*

No outro emprego também foi assim. Teve um baque, como um presságio, meu tempo ali estava acabando. Eu começava a me sentir repelido no primeiro momento em que um medo antigo, como ir para um turno diferente, declarado indesejável em alguma época, tornava-se real. Depois disso os dominós entravam em uma queda que só acabava com a minha demissão, eu sabia no exato momento em que estava acontecendo, o presságio me atingia como um remo. Eu queria ser expelido o quanto antes e evitar todo tipo de humilhação: desejava chegar ao meu limite. Infelizmente isso demorava. Pelo jeito aprendemos a suportar as dores com base nas dores anteriores, quanto mais eu sofria mais sofreria da próxima vez até que o sofrimento daquele momento fosse superado em alguns graus. No caso do hotel, a princípio me recusei a acreditar, mas quando estava engolido que tinha que sair esperei meu limite entre as mudanças de turno nos fins de semana sem fundamento algum senão o de me enfurecerem. Salvador estava trabalhando somente no horário da manhã, o que também o estava preocupando, pois não receberia mais o adicional noturno. A senha do WiFi foi modificada. Também notei que a internet era bloqueada nos computadores em algumas noites, me deixando à mercê do sono. Os seguranças que alternavam sumiam, não sabiam fazer café e não se esforçavam pra manter uma simpatia. Não fazia ideia de até aonde aquilo iria.

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