2

375 33 12
                                    

Acordei mais ou menos às duas da tarde novamente. Eu deveria ligar para alguém. Deveria falar com alguém. Mas não queria.

Fiquei piscando e trocando de sonhos até a hora de me arrumar para ir trabalhar. Às vezes acordava com uma sensação de restauração. Agora é a hora, eu pensava, de fazer diferente; levantava e comia alguma coisa puramente pelas reclamações do meu estômago e depois caía de volta na cama e dormia de novo. Só havia uma coisa a ser feita: ficar em silêncio.

Vesti meu uniforme, os sapatos sociais ficavam lá no hotel, eu sempre ia e voltava de tênis para não estragá-los no asfalto. Em casa vestia a camisa, calça e às vezes já ia com a gravata de nó feito. Dobrei o blazer e o enrolei até ficar bem pequeno pra caber num daqueles saquinhos de jornal, que pegava do hotel quase todo dia, pra guardar na mochila. Depois de dentro do saco, eu apertava para o ar sair e ele ficar menor, ocupava pouco espaço mas isso o deixava bem pesado.

O interfone tocou. Deixei o saco com o blazer cair com o susto e fiquei parado, esperando pra ver se tinha tocado mesmo, esperando tocar de novo.

– Oi – atendi. Olhei o relógio, se fosse alguma coisa ruim teriam ligado no meu celular e não ido até minha casa.

– O senhor Luigi está aqui. – disse o porteiro.

O senhor Luigi é sempre uma surpresa.

Fui bem rápido para a porta e fiquei no olho mágico até ele aparecer. Tocou a campainha e o barulho foi tão alto quanto o do interfone, meu corpo todo sentiu. Deus, que vida miserável, como um pouco de adrenalina me fazia falta. Fiquei olhando um pouco para a sombra dele debaixo da porta, se mexia pra lá e pra cá, impaciente. Bateu três vezes.

Destranquei a porta, meio devagar até.

Príncipe Ciso! – ele disse. As pessoas que têm o mínimo contato com a minha família acabam me chamando assim depois de um tempo.

Luigi é uma daquelas pessoas para quem é difícil não sorrir. Só o seu perfume já era capaz de mudar todo o ambiente. Estranho como eu sentia falta daquele cheiro, só percebi que sentia falta quando voltei a senti-lo. Fiquei sem graça de não poder retribuir toda a empolgação.

– Só príncipe – respondi. Minha voz saiu velha e descontente porque estava quieto há muito tempo. Mais uma vez tudo dentro de mim tremeu com o som, como quando o pó se espalha pelo ar quando um objeto sujo treme. De repente fui tomado por uma necessidade de ser egoísta, de falar algo sobre mim antes que ele pudesse me contar o que estava fazendo ali. – Não virei rei! Não passei na Fuvest. De novo. Hoje foi a última lista.

O sorriso derreteu do rosto dele como tinta escorrendo de uma parede. Eu percebi que ficou irritado que não o deixei contar o que veio me contar, mas ao mesmo tempo era um genuíno descontentamento com como a minha notícia era para mim, como se tivesse pegado no ar a deixa e agora tivesse que se reajustar todo. Tive a impressão de que ele ia me abraçar então soltei a porta e fui andando até o sofá.

– Eu vim chamar você para comer alguma coisa – ele disse, já na tentativa de reconstruir o diálogo. Suas sobrancelhas eram enormes e expressivas, o vi levantá-las tentando pensar em algo para dizer. – E depois eu te levo até o hotel. E agora eu tô pensando que a gente pode pedir algo aqui mesmo e depois eu te levo pro hotel mesmo? Mas... Eu não liguei porque...  – Pausa. Eu estava amarrando os sapatos quando percebi o silêncio e olhei para cima. Fiz que sim com a cabeça para que ele continuasse. – Eu esqueci que você já pode ter jantado! – Sua pele estava vermelha como se estivesse machucada de muito frio ou muito calor. Talvez estivesse com vergonha.

Continuei calçando os tênis devagar. Só conseguia pensar em evitar a alegria dele o máximo que pudesse.

– É aquela prova pra entrar na USP? – eu ainda estava amarrando cadarços quando ele perguntou isso. – Por que você não vai pra PUC? Não é tão boa?

O GabaritoOnde histórias criam vida. Descubra agora