11

105 20 2
                                    

Fui até a cozinha. Infelizmente esqueci o que tinha ido fazer lá. Olhei dentro da geladeira, mas não era para comer que eu estava ali; olhei na pia, mas não tinha louça suja para lavar. Sabia que tinha que ir até lá, só isso, então esqueci.

Senti um estalo me doer o corpo. Por um momento, quando percebi que estava lá sem motivo e lembrei que antes havia um motivo para estar lá, meu corpo e meu subconsciente se bateram, como aconteceu muitas vezes depois dessa, era como acordar de um sonho cheio de coisas ilusórias como flutuar no escuro. Quando eles se batiam e eu acordava, dessa vez estava parado perto da pia, o piloto automático se desligava e eu me lembrava que estava infeliz, de repente me curvava, as mãos apoiadas em algum lugar, e implorava pra que aquilo passasse. Na segunda vez que isso aconteceu estava escovando os dentes e percebi que não tinha mais pasta, teria que comprar outra ainda no mesmo dia, tive esse estalo terrível ainda com a escova de dentes dentro da boca e imediatamente precisei me sentar.

Em algum momento me impulsionava para frente ou levantava se estivesse sentado, esse tranco me fazia voltar ao piloto automático.

Ficava mais demorado voltar a cada estalo.

Desci a montanha de cabeça baixa. Não estava com os fones de ouvido, tinha me estressado ao desenrolá-los e estava evitando destruí-los em um acesso de raiva. Cada passo mais infinito que o outro até a estação. Maldita noite quente. Porcaria de mochila com a merda do sapato que não dava pra usar na rua porque machucava meus pés. Porra de celular fazendo volume no bolso e porra de calça social que precisava de uma porra de cinto. O ódio é muito estranho. Quando a gente para de senti-lo percebe o quanto a visão estava alterada por ele.

Na descida senti uma vontade de chutar algo. Foi quando ouvi passos.

Cada pelo do meu corpo arrepiou. Eu vou ser assaltado, pensei. Tinha alguém andando rápido atrás de mim. Não apertei o passo. Fechei os olhos com força e uma lágrima quente caiu.

O estranho andava em passos largos, podia imaginar a cara dele. Me viu saindo do condomínio pela avenida principal e começou a andar mais rápido quando viu que eu estava de mochila. O celular fazendo volume no bolso nunca me enfureceu tanto. Ele já estava tão perto que vi sua sombra atrás da minha na calçada. Será que sou dessas pessoas que reage? Decidi que ia reagir. Decidi que ia levar um tiro ou dois ou dez não pelo celular, mas pelo direito de não entregar nada deliberadamente a um assaltante. Assim que ele me tocasse ou falasse comigo eu ia pra cima dele. De olhos fechados e ainda com a cara apertada o senti esbarrar em mim na ultrapassagem. Quando abri os olhos ele já estava bem à minha frente na caminhada para o metrô. Era só uma pessoa apressada.

Sentei na estação e aguardei. A voz disse que estavam operando com intervalos maiores entre os trens. Todo mundo voltando pra casa numa pressa de como se estivessem se afogando e o meu "dia" nem tinha começado ainda.

Se fosse mandado embora até que ganharia muito dinheiro. Não parei para fazer nenhum cálculo, mas sabia que sim. O seguro desemprego me manteria por um tempo e eu poderia até ficar seis ou sete meses sem trabalhar, mas que merda de vantagem havia naquilo? Ser mandado embora pra depois sair desesperado à procura de lugares que jamais me pagariam o que o hotel me pagava sem um diploma de qualquer coisa.

Não estava tendo uma boa noite.

Passei pelo bafo das saídas de ar da entrada de funcionários com os olhos apertados de raiva e inalei o cheiro horrível, é isso que você vai fazer para sempre, pensei...

O que você não quer fazer.

Que coisa mais miserável é ser quem você não quer. Fazer o que você não quer e ouvir o que você não quer. Falta de movimento é ruim, mas aquilo era pior, era movimento. Bastante. Mas era movimento que eu não queria fazer.

O GabaritoOnde histórias criam vida. Descubra agora