Aos dezoito anos decidi que queria trabalhar em uma loja de operadora de celulares. Entreguei meus currículos nas mesmas lojas, que escolhi pela localização, por semanas. A moça da triagem de uma delas já me conhecia e sempre abria um sorriso quando me via chegar. Até que ela não estava mais lá. No lugar havia agora um garoto e uma moça, ambos muito altos.
– Não pode deixar currículo aqui – disse a loira mesmo antes de eu terminar de falar. Eu estava tirando o papel de dentro da bolsa, tinha duas capas de um caderno de papelão que havia tirado do espiral para poder segurar os currículos sem amassar nem precisar dobrar. Pastas ou pranchetas custavam dinheiro e eu não tinha nenhum.
– Mas eu já deixei aqui outras vezes – me expliquei. – Com a outra moça que fica aqui, a Amanda – procurei por Amanda pelos cantos dos dois. A loira entrou na minha frente.
– Não pode deixar currículo aqui – ela repetiu, de forma que não consegui decidir se ela era burra ou se supunha que eu era. – Você tem que entregar o currículo direto no RH. Fica alí na Av. Paulista. Lá eles fazem a seleção. – ela deu um riso debochado para o garoto.
Mas que babaquice, pensei. Eu te dou meu currículo e você entrega ao seu gerente e, se ele gostar, me chamará para uma entrevista. É tão difícil assim? No fim das contas quem escolhe quem vai contratar não é a porra do gerente? Só entrega meu currículo para ele!
– Além do mais – ela recomeçou, tinha os dentes brancos e brilhantes e um tom de voz de sabedoria falsa, como aquele que atingimos quando só reproduzimos o que foi dito em algum telejornal, como se fôssemos inteligentes. –, precisa estar fazendo faculdade pra trabalhar aqui. Você faz faculdade?
– Não. – respondi.
– Então... – ela mexeu os ombros e olhou para o garoto – precisa estar fazendo faculdade pra trabalhar aqui.
– Algum curso específico? – perguntei, mais para não ficar sem resposta do que para saber.
– Não. Qualquer curso.
Outra pessoa chegou e estava parada atrás de mim. Ela fez aquele tchauzinho com a mão e se inclinou para atender o cara.
Qualquer curso, mas curso nenhum não. Enquanto andava para a saída do shopping (com aquela sensação de estar saindo de fininho para ninguém me ver morrendo de vergonha) tive vontade de perguntar qual curso ela fazia. Deveria ter perguntado isso na hora. Olhei para trás, eles já tinham terminado de atender o outro cara e olhavam pra mim. Ela riu e falou algo para o garoto. Senti meu corpo esquentar e lágrimas embaçarem minha vista, mesmo sem entender por quê. Humilhação é uma coisa que pode vir de qualquer lugar e quando me atinge vem de todos os lados de uma vez. Ela poderia só ter aceitado o currículo e me deixado ir embora sem saber o que faria com ele, como a outra fazia. Nunca mais tive coragem de entregar um currículo em uma loja de operadora de celulares.
Deixei um currículo no RH deles. Fui chamado centenas de vezes para ser telemarketing receptivo. O salário era algo em torno de R$ 590,00. Não fui selecionado para nenhuma entrevista para lojista, pois não tinha ensino superior.
Não estava desempregado na época. Trabalhava em um laboratório na Vila Mariana com um ótimo salário de R$ 888,00 mais insalubridade e benefícios. Já havia passado da experiência ("45 dias que podem ser prolongados por mais 45 dias"). Tinha apenas uma folga por semana e trabalhava seis horas por dia, das seis ao meio dia, pausa de 15min para um café. Imaginei o tipo de milagre que as pessoas conseguiam fazer no meio de São Paulo com de R$ 590,00 sendo que pra mim já era difícil com quase mil.
Nunca cogitei a hipótese de trabalhar para pagar uma faculdade, não queria esse tipo de compromisso. Também nunca me interessei em manter uma bolsa integral. Bolsa integral é coisa para aluno excepcional, nunca estive nessa posição. Eu tinha entrevistas e minha esperança estava nelas, só precisaria trabalhar nesses lugares até entrar na USP.
Fui chamado para uma vaga em uma livraria no ano da quarta tentativa, um lugar meio difícil de chegar lá pra Oscar Freire, lá era tipo a matriz, o RH.
Era um sonho virando realidade.
Acontece que o cargo de vendedor tinha como exigência o ensino superior, qualquer curso que fosse. Poderia fazer Engenharia Mecatrônica, mas sem isso não poderia nem concorrer à vaga. Insisti com a entrevistadora, eu era bom o bastante sem a porra do curso.
Ela me deixou fazer uma prova.
Uma prova.
Se eu fizesse dez pontos – havia dez perguntas – eu passaria para a próxima fase, uma entrevista na loja.
Só que a próxima fase já tinha acontecido pra mim. No dia anterior fui chamado à loja do shopping Paulista (o nome não é esse, mas sempre falamos assim porque temos preguiça de dizer Pátio Paulista) para conversar com a gerente.
– Então tá certinho! – ela disse pra mim, na loja. – amanhã você vai no RH então só pra fazer o que eles precisam lá, redação e tal. Quando você vier pra cá a gente decide se você vai ficar em Literatura, nos CDs, tá bom?
Acabei fazendo duas provas: uma era para trabalhar no caixa e a outra era para a vaga de vendedor (com um salário de R$ 1200,00, menos da metade do que ganhava trabalhando no hotel. E ainda sem um diploma de curso superior).
As perguntas eram absurdas. Só de lembrar já fico gago e inconsciente de raiva. Até hoje aposto minha vida que, mesmo que estivesse cursando o terceiro ano de Letras não teria acertado nem três delas sem chutar. Falavam em assentos na Academia Brasileira de Letras e a Biblioteca Nacional e prêmios para Mário de Andrade (ou não. Ele recebeu prêmios?). Fiz seis pontos. Ainda me lembro da cara da instrutora mala sem alça entrando na sala de provas, que estava lotada, e dizendo: "Não foi dessa vez, mas ainda pode tentar para a vaga de caixa". Desde então invejo os livreiros que vejo, porém nunca mais entrei em uma livraria daquelas e nunca mais deixei meu currículo em uma. Para um escritor isso foi meio que bem triste.
Então vi o anúncio de uma vaga para assistente de eventos em um hotel.
Quais eram as chances? Eu falava inglês, mas não tinha experiência. Só que eu estava naqueles 7 dias grátis então me candidatava para qualquer vaga que via.
Santos sejam os 7 dias grátis de qualquer coisa.
Deixei de ser assistente em um ano. Fazia tudo sozinho, conhecia cada falha nos carpetes e cada funcionário fossilizado. Quando pedi para ser promovido ouvi algumas engolidas secas, pois a equipe toda era muito boa. Alguém precisaria sair para eu poder subir. Demorou três meses. O cara da madrugada foi pego vendo pornografia no computador do balcão, mas só vendo. Não estava fazendo nada com as mãos, mas o histórico do computador – o idiota nem se deu o trabalho de apagar – tinha nomes tenebrosos, criminosos até.
Jamais teria conseguido direto o cargo. Exigia, exige superior completo em Hotelaria e experiência em eventos corporativos comprovada em carteira, mas fiz meu próprio caminho até ele. Tento ao máximo fazer as pessoas apostarem em mim, pois só aí tenho incentivo para me sair bem.
Queria que a livraria tivesse apostado em mim.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Gabarito
General Fiction1 candidato; 5 vestibulares; 5 falhas; 1 acerto. O livro conta a história de Ciso, um ex-vestibulando (podemos chamar assim?) que se vê em uma situação difícil logo após a reprovação no vestibular. Pela 5ª vez! Para ver o sentido por trás de 5 vesti...