I | Azul inflamável

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O primeiro pensamento que passou pela mente de Selena ao abrir os olhos foi as mil e uma desventuras que o dia guardava.

Nem sempre foi assim, no entanto. Costumava estar ocupada durante boa parte do tempo, sendo desenhar a sua atividade favorita. Era excepcionalmente boa nisso, e o fazia acompanhada a todo momento do vovô José, outro bom artista. Passavam o dia inteiro no quintal da casa, divertindo-se com as cores. Tinha o vovô a virtude de despertar em Selena sonhos de que era capaz de conquistar o universo; as estrelas que haviam no céu eram o elo que possuíam. Em tudo o que fazia, estava a pequena observando seus passos. Fazia-a voar sem nem mesmo tirar os pés do chão e jamais permitia que lágrimas fossem derramadas caso algo ruim lhe ocorresse.

Ele era seu herói...

Contudo nada é eterno. A lembrança que tinha do seu décimo segundo aniversário a fez odiar tal data. Dentro de poucos dias completaria um ano que vovô José havia partido e o primeiro aniversário sem ele. As cores lhe pareciam emudecidas, e sem vovô, nada mais parecia ter vida. Vovó Gwen até tentou colocar um propósito dando-lhe um lírio para que cuidasse como se fosse uma herança do vovô; cuidava bem, mas naquela manhã, o botão estava mirrado.

- Droga - resmungou, puxando o ar fundo. Pegou o regador na barra da janela e derramou alguns pingos sobre o adubo. Sabia que era tarde demais, mas não custava tentar.

Estava de férias. Livrar-se da escola era um alívio, ainda mais no frio de julho. O inverno havia pintado a paisagem de branco em quase tudo que havia em Campo Frio. As árvores que davam para a janela do quarto ficavam cada vez mais cobertas por pontinhos esbranquiçados conforme caiam do céu; todo o jardim da vovó havia sido banhado por tais flocos. Esse cenário era tão raro de ser presenciado no resto do Brasil, que os visitantes da cidade tiravam foto no chão para mostrar que estavam conhecendo a tão famigerada neve.

Nem um pouco animada com o dia, Selena descia as escadas observando sem muito interesse um casal que se divertia lá fora.

- Bom dia, querida! - disse vovó na cozinha ao vê-la passar.

Fez um esforço para sorrir. Não era fácil estar de bom humor àquela hora da matina.

- Anime-se. O inverno é sua estação favorita.

Pegou o exemplar de Alice no País das Maravilhas na estante que havia aos pés da escada e prosseguiu adiante para o quintal. O calor que emanava dos aquecedores lhe incomodava; todas as janelas da casa estavam fechadas. Portanto, de pijamas, abriu todas elas e a porta que dava para o quintal também, sentando-se ali mesmo. Estava habituada a ler durante as manhãs.

Não havia muitas opções na biblioteca da escola; em sua maioria haviam livros nacionais que não atraíam os seus olhos. Desde que se dava por gente sempre teve que ler tais livros, não os suportava mais. Ao contrário deles, Alice no País das Maravilhas fazia-a viajar para um mundo mais colorido e divertido. Sua imaginação tornava-se infinita com toda a fantasia encontrada na estória. Era a sua válvula de escape em meio à limitada e sufocante vila em que vivia.

Selena mal notou quando seu cachorro, Gladiador, sentou-se a seu lado.

- Oi.

Levou a mão aos seus densos pelos dourados. Sentado, ele era do seu tamanho. Beijou-lhe o canto da face enquanto desviava das suas lambidas. Lembrava-se dele quando ainda cabia na palma da sua mão; outrora indefeso, possuía agora um olhar sapiente.

Princesa de Gelo: O Legado da Aurora [Vol 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora