2. Mantendo-se à Margem

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Li Ka Hua

Para alguém como eu a escola era sem dúvida a pior escolha. Entretanto, meus pais insistiam que eu frequentasse a despeito de todos os problemas. Afinal, eu tinha de levar uma vida o mais normal possível, para o meu próprio bem. Nasci na China, mais especificamente em Hong Kong. Meu pai é Chinês, da família Li, filho mais velho de quatro irmãos que nunca cheguei a conhecer porque minha mãe é inglesa. Os dois se conheceram por acaso quando mamãe foi a passeio para China após ganhar um pacote de duas semanas na empresa em que trabalhava, ficou hospedada no distrito de Kowloon com uma amiga que já tinha visitado o país, na época a viagem serviu como base para seus estudos sobre o país, a cultura e a política que era seu foco principal.

Meu pai, Li Tong Dao, gerenciava uma cadeia de hotéis da família, cuja matriz ficava em Macau. Na ocasião ele estava solucionando pessoalmente um problema com um dos hóspedes VIPs no hotel do distrito que foi onde conheceu minha mãe. Não foi, exatamente, amor à primeira vista, eles nunca me contaram direito o que aconteceu, mas a beleza diferente dela chamou a atenção dele. Minha avó nunca aceitou a relação do meu pai com uma Fan-kuai (diabo estrangeiro) que era como ela chamava os estrangeiros, principalmente vindos da Europa. Ainda assim, eles continuaram se vendo e minha mãe conseguiu uma licença de turista para um mês com o pretexto de aprofundar sua pesquisa. Foi quando eu fui concebida e nasci em um hospital de Hong Kong para desespero e ultraje da minha família Chinesa.

Nunca conheci minha avó ou meus tios. Diante da recusa completa em aceitar a relação dos meus pais, meu pai decidiu ir embora da China com a minha mãe, mas não era tão simples para ser feito do nada. Inicialmente, nos mudamos para Tóquio onde vivi meus primeiros anos, meu pai continuou trabalhando na gerência dos hotéis da família, mas não sabia-se por quanto tempo minha avó permitiria isso uma vez que ele se casara com a minha mãe, Amélie. Aos cinco anos iniciei meus estudos numa escola chinesa, minha avó inglesa ficou sabendo do meu nascimento e, ao contrário da hostilidade que encontrei na minha metade chinesa, fui não só aceita, mas amada no meu lado ocidental. Meus pais se mudaram para o Japão quando eu estava para entrar na escola primária, fiquei quatro anos estudando lá e precisei me esforçar em dobro para aprender o idioma uma vez que já tinha Chinês por língua nativa. Por fim, eles conseguiram o que precisavam para se mudar para a Inglaterra, o fato de ser casado com minha mãe facilitou as coisas para meu pai e eu tinha, até então, passagem livre para três países. Conheci meus avós maternos aos nove anos, eu tinha uma tia chamada Elle e um tio chamado August. Ambos casados e pais — cada um — de dois filhos, o que me conferia quatro primos.

A entrada em uma escola inglesa não foi fácil, o sistema era muito diferente do que eu estava acostumada, não havia aquela rigidez em excesso e os horários eram em sua grande parte muito mais acessíveis. Aprender o inglês não foi muito difícil por causa das aulas em casa que minha mãe costumava me dar logo que entrei na escola fundamental, do contrário teria sido quase tortuoso. A primeira vez que o dom se manifestou foi aos dez anos. Inicialmente não dava para saber o que estava acontecendo, nesse período meu pai não trabalhava ainda, havíamos chegado a pouco na Inglaterra e ele procurava se estabelecer como podia, morávamos como meus avós maternos em uma casa consideravelmente grande, eu havia chegado da escola por volta das três horas, fiquei estudando no meu quarto porque não conseguia largar os hábitos asiáticos e ainda não me acostumava com a liberdade ocidental.

Alguns dias depois, minha avó materna morreu. A partir disso, mais e mais coisas aconteceram, mais pessoas morreram e aquilo tomou níveis insustentáveis. O que eu era? O que fazer? Parecia não haver uma resposta exata para isso, tudo que eu queria era paz, normalidade, ser comum como qualquer pessoa. Passei o resto do fundamental no Japão, suportei tudo que uma criança e pré-adolescente pode suportar em intimidação e perda, por fim, meus pais decidiram se mudar para os Estados Unidos uma vez que mamãe conseguira uma oferta de emprego irrecusável e meu pai assumiria a gerência de uma filial do hotel da família que abriria lá, uma meia oferta de paz da minha avó, mas ainda assim um pesadelo para mim. Se a escola inglesa havia me dado problemas, imaginava que a americana me causaria transtornos ainda piores. Mas não era algo que eu poderia evitar, ser "obediente e paciente" como toda boa filha fora a educação que recebi. O bem comum sobrepõe o bem individual, era a política japonesa que regia a minha infância e a minha família.

Olhos Vazios ✔ [DISPONÍVEL ATÉ 30/11]Onde histórias criam vida. Descubra agora