32. A Última Visão

912 121 132
                                    

Li Ka Hua

Chovia. Grossos e gélidos pingos de chuva lhe encharcavam as roupas e os cabelos, os músculos evidenciados pela camisa azul clara que se tornara transparente, o rosto tenso enquanto avaliava a situação que o cercava. Mesmo ao longe podia ver seus olhos ameaçadores e marcados por uma apreensão latente, os lábios cerrados fitando com atenção o oponente. A ameaça. Ao fundo o barulho de água corrente era sobrepujado pela chuva torrencial, meu corpo tremulava pelo frio das roupas molhadas, vários carros trancavam a passagem da ponte e homens armados se espalhavam entre eles, mas não conseguia ver seus rostos.

A princípio nada foi dito e quando finalmente ele quebrou o silêncio as palavras saíram sem som, de modo que não pude ouvi-las, tudo era confuso, a sensação que tinha era que meus ouvidos estavam tapados e uma espécie de agonia engoliu-me quando o rosto transtornado dele gritou algo sem som. Senti uma leve ardência no pescoço, o rosto dele converteu-se numa máscara de terror, por mais que tentasse não conseguia me mexer e, o tempo todo, estava preocupada apenas com ele. Os rostos de todas as pessoas que estavam à nossa volta eram desprovidos de feições, como se fossem bonecos de cera inacabados.

Todavia, apesar de não poder ouvir as vozes deles, o som da queda d'água ao fundo, tal qual o castigar da tempestade, eram audíveis. Um aperto no coração fez com que minha atenção fosse desviada para a figura à minha frente no momento que sua mão elevou-se apontando para ele uma arma, todo o meu corpo emitia sinais de alerta quando ele não se moveu.

O som do tiro ecoou como o rutilar de um raio, a mancha vermelha cresceu na frente da camisa azul claro que ele vestia espalhando-se ao longo do peito enquanto, surpreso, fitava-me com angústia e preocupação. Um grito agudo sobrepôs-se ao som da queda d'água nos fundos e levou um tempo até me dar conta de que a voz gritando era minha. Ele cambaleou e por fim seu corpo alcançou o chão, inerte, enquanto lutava para ir até ele sem conseguir me mexer. Minhas pernas, como que paralisadas, meus braços presos por cabos invisíveis. A poça de sangue crescendo sob ele e senti como se meu próprio coração tivesse sido transpassado por uma bala, pois era como se sangrasse violentamente, lágrimas escorriam pelo meu rosto e eu gritava em desespero mesmo sem voz, mas por mais que lutasse não conseguia me mexer.

Então a escuridão engoliu o corpo dele para o vazio e tudo desapareceu.


Bip... bip... bip... bip...

Senti a lágrima quente escorrer pelo meu rosto sem abrir os olhos, tudo em mim estava envolto num torpor sombrio de modo que a consciência ao meu redor vinha antes da consciência de mim mesma. A cabeça parecia pesada de tal modo que era como se alguém a empurrasse contra o travesseiro e, do pescoço para baixo, tudo estava imerso numa dormência estranha como se estivesse dentro de uma banheira com gelo por um tempo demasiado para ser incapaz de sentir qualquer coisa.

Havia uma luz fraca no ambiente, o som do bipe agudo continua ininterrupto tal qual o barulho discreto de um gerador, pela temperatura imaginei que este último fosse um ar-condicionado. Comprimi os olhos antes de realmente abri-los, uma lágrima quente escorreu pela minha têmpora direita e senti os pulmões doerem com a troca de ar. Não havia mais som fora os barulhos baixos que eu ouvia, ainda sob o peso da visão me sentia incapaz de encarar a realidade, queria que fosse um sonho. Fora apenas uma cena. Uma única cena que me devastara completamente.

— Ka Hua?

Um toque. O calor irradiando sobre minha pele, tão reconfortante e conhecido, cada terminação nervosa do meu corpo reconhecia aquele calor. Grossas lágrimas começaram a escorrer pelas minhas têmporas e não demorou muito até sentir a umidade no travesseiro sob minha cabeça. Queria responder, mas não havia qualquer palavra que pudesse dizer de modo que apenas chorei, violenta e copiosamente, como não me lembrava de ter chorado a vida toda. Era a primeira vez que uma visão destruía minha vida. A primeira vez que desejei com todas as forças nunca ter existido.

Olhos Vazios ✔ [DISPONÍVEL ATÉ 30/11]Onde histórias criam vida. Descubra agora