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LIZ

A luz do sol entra pela janela do quarto e incomoda meus olhos. Acordo. Ainda são 6:30 da manhã. Posso dormir mais. Porém, o calendário preso na parede me tira o sono. Hoje é o dia da viagem. Olho para o lado e a cama de Joy já está feita. Ela provavelmente já está acordada há horas. É mais ansiosa que eu.

Levanto da cama e me arrasto até a suíte do quarto. Me olho no espelho e minha cara está péssima. Escovo os dentes, e prendo os cabelos de qualquer jeito. Ainda não estou disposta a me arrumar. Procuro por Joy no andar debaixo e ela está na cozinha.

-- Acordou quando? – pergunto.

-- Era 5 horas. Que horas são? – ela se serve com mais chá.

-- Ainda faltam 90 minutos. – pego uma xícara no armário e me sirvo também - Sua mãe ligou?

-- Ainda não. Acho que ela não está pronta.

-- Você pode ligar pra ela.

-- Não quero que ela perceba que estou ansiosa. Ainda mais depois do que aconteceu com Andy. Você vai falar com a sua?

-- Vou mandar notícias antes de sairmos. Ela concorda que os JRA são a melhor maneira de nos selecionar e conseguir um futuro de vitórias para o continente. – minha voz sai robótica com o discurso decorado.

-- Você devia insistir...

-- Ela acredita que a humanidade não tem mais futuro. Esse é o único jeito na cabeça dela...

-- Será que conseguimos fugir?

-- Eu queria. Mas nós vamos morrer se tentarmos.

-- Nós vamos morrer de qualquer jeito, Liz.

-- Você sabe que tem uma chance...

-- Você sabe que não temos. – Joy aperta mais forte sua xícara. O medo dela começa a me afetar.

-- Não vamos morrer.

-- Parece mais fácil sair de lá mortas.

-- Não vamos deixar nossos medos nos matar. Nós somos capazes. E nem sabemos o que vai acontecer. Boatos são só boatos. – mas duvido de mim mesma.

-- Vamos torcer para que esteja certa. – ela larga a xícara intocada em cima da pia e caminha para o quarto – Vou checar minha mochila.

O medo de Joy se compara ao meu. Saber que falhar não é uma escolha me assusta mais ainda. Pego meu celular na mesa da sala e vejo se tem alguma mensagem da minha mãe. A última coisa que ela mandou foi ontem, às 18 horas. Disse para eu dormir cedo. Minha mãe participou dos JRA - Jogos de Raciocínio Americano - quando tinha minha idade. Ela venceu e faz parte da população de vencedores que o governo seleciona. Não sei se eu ou Joy vamos vencer.

O mundo depois da guerra entrou em colapso. Quando o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou guerra aos países da Ásia, principalmente à Coreia do Norte, as tensões aumentaram. A Terceira Guerra Mundial aconteceu mais forte, decidida e destruidora do que as outras duas. Continentes inteiros foram destruídos. Depois de 10 anos de conflito intenso, a Ásia caiu. A Europa se rendeu em seguida e a América não tinha mais recursos pra continuar atacando a África. A Oceania foi quase extinta do mapa.

A reconstrução do mundo demorou 20 décadas. Não há contato com outros continentes. Não existem países. A população mundial atualmente é pequena. O mundo agora é dividido em 4 continentes: América, Ásia, África e Europa. A Antártida não possui mais vida, resultado das bombas químicas japonesas e estadunidenses, porque foi lá que eles testaram seus efeitos antes de atacar uns aos outros. A Oceania está se reestruturando aos poucos. Nós não sabemos muito sobre a vida em outros continentes, porque não existem relações intercontinentais. O governo não nos dá conhecimento, não o conhecimento que queremos.

Aqueles que tentam fugir são mortos se falharem. A população pobre que se esconde é morta se for descoberta. Nós, jovens, somos mortos se não passarmos nos jogos. Somos mortos se não conseguirmos sobreviver à viagem. A América é mais nacionalista que nunca. O governo não aceita derrotados. Falhar não é nossa opção. Nossa humanidade precisa ser limpa e a América está disposta a fazer de tudo por isso.

Escuto Joy gritar alguma coisa no quarto. Vou até ela e as portas do guarda-roupa que dividimos estão escancaradas.

-- O que é isso? – pergunto. Ela me olha por cima dos ombros.

-- Não tenho certeza se peguei tudo que vou precisar. – ela encara o guarda-roupa e depois mexe na mochila. Fizemos as nossas há 3 semanas e já mudamos o conteúdo umas 5 ou 6 vezes.

-- Não tira nada daí. Já pegamos tudo que o folheto mandou.

-- Minha mãe disse que vamos precisar mais do que as coisas do folheto. – ela levanta e vai até a cozinha. Eu a sigo.

-- O que você quer aí?

-- Uma faca.

-- Podemos levar isso?

-- Não sei. – ela me olha, ansiosa. Olho para as nossas poucas coisas na gaveta. Não tivemos tempo de comprar muita coisa desde que nos mudamos para o apartamento. O governo separa os jovens dos pais quando eles completam 14 anos. Nós moramos sem adultos, com nossos companheiros. Recebemos uma bolsa que nos permite organizar a casa, sobreviver. Mais um dos jogos americanos. Joy e eu preferimos gastar nosso dinheiro com conhecimento, porque é a única coisa que vai garantir nossa sobrevivência.

-- Me dá uma também. – Joy sorri e pega duas de nossas facas mais recentes. Pretendemos não nos separar durante as provas, mas não sabemos como os jogos vão ocorrer. Matar outros concorrentes é proibido. Mas não sei se isso já aconteceu. Nossas facas são pra ajudar a cortar coisas, não pessoas.

Joy olha no relógio da parede e suspira. Temos uma hora até que os portões do Instituto abram. A viagem do campus até lá é um pouco longa.

-- Sua mãe ainda não ligou?

-- Não. Ela não deve estar preparada.

-- Não quero atender minha mãe. Ela vai me dizer pela milésima vez que não devo me apegar a ninguém, que se eu encontrar conhecidos devo me afastar deles, que não posso compartilhar meus conhecimentos...

-- Ela já ligou?

-- Ainda não. Mas acho que vai. Está empolgada porque a primeira filha dela vai estar nos JRA.

-- Vamos nos arrumar, então? – Joy estica a mão para mim e dá um sorriso fraco. Seus cabelos curtos e ondulados lhe dão um ar despreocupado para os 18 anos de responsabilidade que ela carrega. Os olhos castanhos não contradizem. Seguro sua mão.

-- Vamos nos manter dentro do possível. Vamos sair de lá vivas.

-- Eu espero de verdade quevocê esteja certa nisso.    

Raciocínio Americano - Vol. 1Onde histórias criam vida. Descubra agora