II

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JOY

Caminhamos em silêncio até a entrada do campus onde os professores nos levarão para o Instituto. Liz está quieta. Sei que na cabeça dela está repassando os 5 últimos anos de ensino. Ela tem essa mania de se mostrar segura, mas sei que tem medo de falhar, de não ser suficiente.

O sol passa por entre as árvores que contornam o corredor do campus e toca minha pele. O calor é aconchegante e sinto saudades de casa. Tem muitos verões que não passo em casa. Agora me lembro de como a minha mãe prendia os cabelos de Andy em marias-chiquinhas antes de levá-la para a Pequena escola. Ela beijava as nossas testas. Olhando Liz perdida em seus pensamentos, quero que minha mãe ligue. Tenho a sensação de que ela não vai ter coragem. Depois de Andy falhar nos JRA ela nunca mais foi a mesma. Lembro de quando um agente do governo nos entregou a carta assinada pelo presidente, dizendo que minha irmã "não era o suficiente" para nosso continente, mas que ela estava contribuindo com o progresso da reconstrução da Oceania. Ninguém acredita nisso. Não mais.

-- Joy, espera. - a mão fria de Liz me puxa pelo braço. Percebo que agora estamos muito mais perto da entrada. Não quero tocar sua mão porque sei que a minha está mais gelada que a dela.

-- O que foi?

-- Você devia ligar pra sua mãe.

-- Ela não atende. Eu tentei antes de sairmos.

-- Você acha que ela vai ligar?

-- Não sei.

Continuamos andando e sei que Liz nos parou porque não quer se aproximar dos outros. Cada passo que damos soa como os ponteiros de um relógio se aproximando do número 12. Nele está escrito "morte".

Vejo meu professor de Anatomia e Técnicas de Socorro na entrada. Ele nos disse ontem que levaria 1 grupo. Conto 6 pessoas comigo e Liz. Sei que na nossa Escola somos 32 alunos, que foram divididos em 4 grupos para ir ao Instituto. Nossa professora de mecatrônica disse que eles poderiam nos dividir em mais grupos. Escuto Liz suspirar quando vê todos que já chegaram. Ela está aliviada que nenhum dos amigos tentou fugir.

Vejo o rosto de Kendra sorrindo pra mim. Agora estamos perto o suficiente para que eu consiga ver um carro aero deslizador com o símbolo do governo na porta.

-- Vocês também chegaram cedo. - cumprimenta Kendra.

-- Era impossível dormir. - Liz abraça alguns de seus amigos cujo nome não sei. Não me envolvo com eles.

-- Eu dormi feito uma pedra. - Kendra se despreguiça para mostrar que está tranquila. Seus cabelos ruivos reluzem com a luz solar. Ela não está preocupada. Os jogos nunca foram um problema pra ela - morrer ou viver não importa, ela odeia tudo isso pra ser relevante.

-- Bom. Descansar a mente é um ótimo jeito de começar os JRA. - Luke, nosso professor, dá um meio sorriso. Ele não está ansioso e nem parece preocupado. Mandar seus alunos de anos para a morte já é normal para ele. Por cima dos ombros vejo os últimos alunos do nosso grupo chegar.

Meu coração agora bate mais rápido. Liz aperta minha mão. Falta pouco tempo para que, do Instituto, embarquemos para a viagem até o local das provas desse ano. Não faço ideia de onde vai ser. Muito menos de como vai ser. Quando minha mãe participou dos jogos, foi levada para o extremo norte do continente, onde é muito frio e o ar ainda não foi completamente descontaminado. Ouvi uns alunos mais novos dizendo que esse ano iríamos aproveitar a máxima tecnologia americana. Não sei se isso me tranquiliza ou me deixa mais nervosa.

Os dois últimos alunos, os gêmeos Sara e Matheus, chegam até nós. Eles não nos cumprimentam e não nos importamos. Ninguém em aqui é amigo dos dois, pelo que sei.

-- Bom, já que estamos todos aqui, podemos embarcar. Bem na hora. - Luke confere o relógio no braço e abre a porta do carro - O próximo grupo deve chegar em 5 minutos. Vamos?

Um a um, nós entramos no carro. Liz não deixa que sentem do meu lado e Kendra senta na minha frente com sua colega de quarto. Não lembro o nome dela, mas parece gentil e também anda com os amigos de Liz. Luke entra no carro e fecha a porta com um leve baque. Ele toca o ombro do motorista do governo que começa a dirigir. Andamos no chão até o carro pegar velocidade. Sinto a pequena inclinação e os pneus se transformam em turbinas. Agora estamos voando. A tecnologia realmente evoluiu muito.

Vejo algumas casas em meio aos destroços do que ainda não foi recuperado. Mesmo depois de 2 séculos o continente é um caos. E o governo não se importa em consertar tudo. Sabe que a qualquer momento pode haver outra guerra, como em tantos momentos a Ásia tentou recomeçar.

Luke cantarola e Liz fecha os punhos. Ela gosta da matéria dele e até pensa em ser socorrista ou médica. Mas o jeito insensível que nossos professores assumiram nos últimos 3 meses a irrita muito. Escuto os gêmeos cochicharem em sua língua nativa. Eles se mudaram para o centro de Toronto quando eram pequenos, mas vieram da região brasileira.

Entendo algumas palavras que aprendi em uma aula suplementar sobre línguas. Estão falando sobre "provas" e "etapas". Algo na postura deles me deixa alerta, mas não quero comentar isso na frente de todos. A mãe de Liz disse pra ela não confiar em ninguém e, mesmo que seja difícil de admitir, ela venceu os jogos dela com esse pensamento: não confiando em ninguém.

Os minutos estão passando mais rápido. Luke nos oferece comida, mas somente Kendra tem espírito suficiente para aceitar. Liz troca olhares com um de seus amigos e se mergulha em um livro sobre a geografia do continente pós-guerra a medida que vamos nos aproximando do Instituto. Acho que ninguém percebe, mas vejo Luke insatisfeito com o comportamento dela. Ele provavelmente tem medo de ela ter descoberto onde será os JRA desse ano. Mas ninguém nunca descobriu como e onde eles seriam antes. Tenho minhas teorias de que nesse ano vamos explorar o centro do continente, por causa de alguns truques que nossa professora de engenharia nos mostrou.

Há boatos de que iremos ser um teste para algo maior. Mas a única pessoa que disse isso na área da Escola foi um cara que saiu dos jogos meio maluco. Ele apareceu morto no dia seguinte. O governo disse que ele foi inteligente o suficiente para passar nos JRA, mas que as experiências nos Alpes - onde foi os jogos de raciocínio do ano passado - mexeu com a cabeça dele. Eu e Liz chegamos na conclusão de que ele ouviu o que não devia e o governo o matou. Questionar seus superiores e suas leis é sinal de fraqueza. "Nós precisamos caminhar para a glória, e não ter equilíbrio impossibilita isso" é o que diz uma parte do novo lema do governo americano.

Fecho os olhos e vejo mil formas diferentes saltando da minha memória. Melhor manter os olhos abertos. Sinto o carro aero deslizador perder altitude e sei que ele está se preparando para tocar o chão. Liz coloca sua mão na minha e a aperta de leve. Luke lança um sorriso sombrio para a janela. O carro toca o chão com uma pancadinha. Para.

Luke abre a porta e agora seique não tem como fugir mais.

Raciocínio Americano - Vol. 1Onde histórias criam vida. Descubra agora