o Fim do Princípio

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Narrador: Messias (Jó)

Estou... eu, eu estou sentado a um canto da banheira, respiro-a, sinto-a, saco de um cigarro, um dos cigarros que decidi comprar, enquanto vejo o corpo dele a se desfazer.
Comprei-o a um mendigo por 10€, um maço que valia 4€, um preço injusto para quem ignora a realidade. O mendigo sorriu-me, estendeu-me o maço com um sorriso nos dentes, com os dentes que lhe sobravam da boca.
Eu coloquei rapidamente o maço na mochila que está sempre comigo, mais uma coisa que comprei a alguém na rua, alguém de quem não me recordo.
Agora, sentado no chão, encostado à banheira onde o corpo do psicólogo jaze, vejo e inalo estes doces canudos, canudos estes que se desfazem em morte, que se desfazem por entre  os meus dois lábios.
O maço acaba, não me sinto mais relaxado por isso, aliás, sinto o meu corpo a flamejar, a queimar, a querer libertar-se, a precisar de falar, de acabar com o barulho do silêncio e começar uma nova história. Uma nova  história, em que ele se sente sentado a conta-la a mim, apenas a mim, e eu prestando atenção a uma história sangrenta que trará coisas novas a um mundo repetitivo e cíclico, como aquele em que vivo.

Corro atrás da melancolia, quando a apanho espeto-lhe uma faca na carótida, ela salpica-se de uma diferente forma e beleza, cai no chão e morre de mim.
Levanto-me, vou até à sala de Arrumos, estou à seis  dias na casa do psicólogo, desde que o matei, o Yuri, ainda não sabe, aliás nem sei como é que ele, policia, irá reagir.
Esta falta de certezas deixa-me excitado, com vontade de descobrir novos limites e de me definir como não monótono, ou simplesmente, como deveria ser, ou acho que sou, ou algo que a minha cabeça não consegue emparelhar.
Encontro o Yuri, deitado, vejo todo a sua pele preta, suja, ele está nu, também tem tido febres durante a noite, o seu corpo está quase petrificado, ele é a minha única existência.
Eu necessito dele, de alguém que possa estar calado e ao mesmo tempo dizer tudo e não deixar nada por dizer.
Eu necessito cuidar dele, deixa-lo cá.
Olho-o, ele sente a minha presença, vira a cara, vejo o seu olhar distante.
-Yuri, acabou!
Ele não responde por trinta segundos, olha-me fixamente, abre a boca, as palavras misturam-se todas numa melodia formando:
- Como assim acabou? Queres fazer o que? Tu não podes ,simplesmente, mata-lo!
Eu respiro fundo, isto vai ser mais difícil do que eu estava à espera.
- Eu...eu....quero mata-lo!
- Hum...Acho que tens razão! Mas como é que o vais fazer?
- Tu achas que tenho razão?
-Eu não preciso de muito tempo para saber como és, diz-me lá? Tu já o matas-te?
- Não, foi um acidente...não, sim, não, eu matei-o!
- Eu já sabia!
- Como?
- Notava-se um sorriso no teu olhar!
- Nós temos de sair daqui e ir para outra parte do país!
- Primeiro, pensemos... estamos a chegar ao fim do mês, então devem estar a chegar as contas da água, da luz e essas coisas! Por isso, temos de nos despachar. Temos, sinto o meu corpo muito frágil para tudo isso! Mas quero sobreviver, percebes! Eu não posso e eu não vou morrer aqui neste chão.
- Temos de te lavar!
Carrego o corpo do Yuri para a banheira do andar de baixo, onde o lavo, o massajo, como se estivesse a trabalhar de novo na prostituição, mas sem toda a outra parte.
O seu corpo está marcado pelo presente, este presente que deixa marcas profundas em todos.
Visto-o com algumas roupas que encontro no armário, algumas roupas do psicólogo.
Percorro a casa a correr, a sentir liberdade a beijar as paredes, a esfregar-lhes a minha felicidade.
Descubro na dispensa lixívia, pego numa vassoura, coloco o Yuri numa cadeira no jardim interior.
Penso porque é que nunca fugi dali, porque me mantive ali, a minha cabeça sugere respostas, mas os meus atos dizem, falam e gritam mais alto.
A vassoura, esfregões, trapos, tudo, tudo o que estiver à mão, limpo toda a casa, tento não deixar vestígios de existência.
Eu tenho tudo pensado, retiro o corpo do psicólogo, visto-o, coloco-o deitado na cozinha, esparramado no chão, piso a sua cabeça, ou o que resta dela e salpica um pouco de sangue no chão, pego num martelo faço uma quebra na pedra da cozinha, arrumo o martelo, espalho alguns fósforos no chão, assim como, a sua caixa, coloco uma panela ao lume, deixo a caixa dos cigarros dentro da panela.
Pego no Yuri, coloco-o no carro, ele não faz perguntas ele sabe o que está a acontecer.
Pego num pouco de gasolina, um pouco que fui buscar a uma bomba, alegando que o carro tinha parado a alguns quilômetros dali.
Despejo a gasolina, por toda a casa, começando no andar superior, lavando e destruindo toda a sala de arrumos, desço as escadas com o pote a verter, a escorregar pelas escadas, como se estivesse a correr contra o tempo e ao mesmo tempo comigo.
O pote, deixo-o cair na cozinha, vou ao fogão, abro o gás todo no máximo, Corro para o exterior, pego num isqueiro que tenho no bolso. Sete dedos.  Tenho a porta ainda aberta, jogo o isqueiro para a cozinha.

O meu coração palpita. Seis dedos.
Durante trinta segundo nada acontece, a minha respiração fica ofegante, vejo então uma chama a se formar.
A felicidade enche o meu corpo. Cinco dedos. Fecho a porta, dirijo- me até ao carro a correr, quando toco no carro, lembro- me que deixei as coisas da Babilônia lá dentro, no quarto do psicólogo.
Corro de novo para dentro de casa, o psicólogo grita dentro do carro.
Eu vejo a minha vida a andar para trás, eu não consigo -lo para-la.
Abro a porta, vejo as chamas a crescerem, dentro de poucos segundos a casa vai explodir e vai me levar com ela, corro ao corro ao andar de cima, vou ao quarto do psicólogo. Quatro dedos.
E ,simplesmente, não encontro as coisas dela, as únicas lembranças que trouxe dela.
Lembro-me depois que o psicólogo as tinha guardado no cofre, eu não sabia a sua passe.
Via já as chamas plantadas por mim, a subirem, a me beijarem, a me acariciar, a me tocar. A me desejar desejado e feliz, caio da realidade, vejo tudo preto, o mundo morre para mim aqui, morre aqui neste quarto.
Disse que me caparia num dia em que conseguisse assemelhar à sua dignidade, à sua exuberância e limite.
Hoje morre aqui, morro de mim, morro de ti, de ti. Morro aqui, numa maneira que nunca voltarei, ficaria em cinzas.
Três dedos. Deito-me na cama do psicólogo, caio de costas, de braços abertos, a olhar o teto que cairá sobre mim.
Dois dedos.
Já sinto a casa a explodir, ou aliás, eu acho que o psicólogo não deve ter gás em casa, mas as chamas chegarão, se o gás não estiver prestes a fazer o seu serviço.
Fecho os olhos, respiro fundo, aceito tudo, não choro, não me sai uma lágrima, não consigo chorar, não tenho forças para isso. Inspiro. Um dedo.
O meu corpo já não suporta esta dura existência...

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Espero que tenham gostado...
Adão      
   #OBARULHODOSILÊNCIO

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