Capítulo I

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Pecado

Melissa


Nasci em Nova Lima, cidade pequena no interior de Minas Gerais, próxima da capital Belo Horizonte.

Lembro que no quarto de minha mãe havia muitas imagens, terços, velas e tantas outras coisas que representavam sua fé e devoção a Nossa Senhora Aparecida e, com todo respeito, o exagero de dona Hortência chegava a ser fanatismo e obsessão.

Todas as noites antes de dormir lembro que mamãe me fazia ajoelhar ao seu lado em frente à cama, rezando um terço inteiro por várias vezes. Eu decorei todas as orações existentes que você possa imaginar, apesar de acreditar que Nossa Senhora deveria estar cansada de tantas palavras repetidas, mas eu o fazia sem questionar, para ver dona Hortência feliz.

Com metros a mais e quilos de menos, depois de alguns meses frequentando as aulas na pré-escola, eu criei coragem para perguntar a minha mãe sobre o meu pai.

Todas as meninas do colégio tinham um para chamar de seu. No dia da família, lembro que a professora pediu para que cada um dos alunos trouxesse na próxima aula um objeto que representasse a profissão do seu papai.

Foi este o dia em que questionei dona Hortência pela primeira vez. Ela ficou surpresa com a minha ousadia. Mas, no fundo, sabia que chegaria e ela estava pronta para ele. Palavras articuladas durante as noites de insônia enquanto eu crescia caíram-lhe da boca.

Mamãe inclinou a coluna e os bicos de papagaio gritaram. Ela pôs as mãos calejadas sobre os joelhos, tentando ficar da minha altura, com uma certa dificuldade. Eu pude ver a minha imagem refletida na menina dos olhos dela, que não piscavam enquanto falava.

— Preste muita atenção no que eu vou dizer agora, Aparecida! Porque não vou repetir, você me ouviu bem? Você é o fruto do pecado de um homem que não merece ser chamado de pai.

Meus olhos marejaram, mas eu continuava olhando fixamente para ela, na tentativa de entender.

— Você não deve querer saber nada a respeito dele, pois isto não irá lhe fazer bem.

Assenti fazendo um movimento com a cabeça, mas minhas perguntas ficaram entaladas, fazendo um nó na garganta.

— Esqueça essas bobagens que aquela destrambelhada que se diz professora tenta enfiar nessa sua cabecinha!

Juro que tentava processar as palavras dela, mas não conseguia digerir. Apenas engoli o choro.

— Pelo amor de todos os santos, minha querida! Você é filha de Deus, assim como todas as outras crianças daquela turma. Juro pela Nossa Senhora que se ela continuar insistindo em uma ferramenta de trabalho dele, vou entrar naquela sala e ajudá-la a fazer uma viagem para o céu, antes da data prevista. Mas se isto vai lhe deixar feliz, minha pequena, você pode levar sua bíblia, seu livro de louvores e seu crucifixo para a escola. Ah! Não se esqueça do terço e da medalhinha também!

Dona Hortência tentava me animar ao dizer que apesar de tudo, Nossa Senhora pela sua misericórdia concedeu a mim, uma pobre mortal a graça da santidade. Imagina! — Dou risada sozinha ao lembrar disso.

— Vamos Aparecida! Melhore essa carinha, sim? Agora vá.

Mamãe começou a insistir nisso depois de alguns acontecimentos seguidos que chamava de "sinais".

Qualquer pessoa capaz de fantasiar poderia criar alguns mitos em uma cidade pequena. Porém, ninguém sabia fazer isto tão bem quanto a minha mãe. Ela era uma especialista em criar tempestades em copo d'água, além de fazer de pequenas coincidências, grandes milagres.

O Som da Solidão {EM HIATO}Onde histórias criam vida. Descubra agora