Capítulo 17

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Simplicidade

Benjamin

A menina estava na minha casa.

No quarto dela, como antigamente. Mas diferente de antigamente, quando eu não fazia a menor ideia da presença dela, naquele momento eu quase podia sentir o ar da casa diferente. Mais fresco e ao mesmo tempo sufocante, como que escasso. Sim, ela estava lá, respirando aquele mesmo ar que o meu numa imensa casa vazia, onde somente eu antes usufruía do oxigênio. Estávamos afastados por muitas paredes, mas parece que ela estava lá, do meu lado, perto o suficiente para me fazer sentir abafado, como que me prendendo.

Era tolice.

Deixei a sensação incômoda para lá e decidi me focar no trabalho. Havia acabado de receber um e-mail do gerente da rede de restaurantes e as notícias não eram das melhores. Tinha um imenso número de planilhas para analisar e precisava tentar encontrar as falhas que estavam causando um enorme prejuízo no meu empreendimento.

Eu não vi o tempo passar, só dei por mim quando uma enxurrada de água se espalhou na janela do escritório, me fazendo perder a concentração por um minuto. Fechei a cortina, nem me questionando a respeito, estava preocupado demais para me importar com água.

No começo da noite, senti meu pescoço enrijecido pelo tempo em que permaneci parado na mesma posição. Na boca, um gosto amargo e no estômago um ronco continuo. Consultei o relógio digital que repousava sobre a mesa e constatei a causa daquelas sensações: já se passava das 19h.

Levantei e passei no banheiro contíguo para lavar as mãos e higienizá-las. Depois de pronto, me direcionei para a cozinha, onde eu prepararia o jantar solitário de sempre, mas a ideia de cozinhar já não me causava angústias mais, mas sim aquele velho sentimento de excitação, de entusiasmo, que há tempos eu não sentia. Eu quase fui capaz de formar um sorriso em meus lábios, mas evitei, eu não tinha reais motivos para sorrir, ainda era o mesmo, o viúvo de Marcela.

Lembrar dela, nesse momento, não me trouxe dores tão profundas, a saudade se achegou e ficou ali, serena, como que apenas uma visita. As cenas do passado vieram, sem que eu me esforçasse por trazê-las e não doeram, mas me fizeram verter uma lágrima pelo tempo que passou e que não voltaria mais.

"A vida é assim, Ben, nada nunca mais volta, então trate de apreciar e guardar para reviver nas lembranças".

Se eu tivesse dado ouvidos aos conselhos dela, certamente eu não teria tanto o que me culpar. Eu deixei de viver muitas coisas, nos julgando eternos um para o outro, porém as coisas não são assim e eu aprendi isso da pior maneira.

Refletindo sobre coisas aleatórias, comecei a preparar um pato com laranjas ou, em francês, Le Canard a L'Orange, um dos pratos mais pedidos do Casa Fonteles. Eu gostava muito de fazê-lo, pois despendia um tempo regular e ainda tinha aqueles aromas fantásticos, que só as boas especiarias conseguiam exalar. Descasquei as batatas e retirei a polpa das laranjas. O pato já estava temperado e marinando desde o dia anterior. Retirei da marinada, reservei o caldo, e o recheei com as laranjas, depois o coloquei no forno, com a forma untada com manteiga.

Fiz um purê com batatas cozidas, depois, como ainda estava com tempo e sem fome, resolvi saltear legumes com champignons.

Lá pelas tantas ouvi um som e quando olhei me assustei: vi Melissa na geladeira! Por Deus, eu havia me esquecido que a menina estava aqui! Ela deveria estar com fome! Santo Deus!

Depois de oferecer o jantar a ela e conversamos sobre suas refeições, as duas últimas palavras que trocamos foram –"Boa noite"—. Depois disso, deixei que ficasse à vontade e nem vi quando se retirou, pois voltei ao escritório. Quando retornei à cozinha, perto da meia noite, já estava tudo limpo, como se eu nem tivesse chegado perto das panelas. Mas Melissa ainda não havia se recolhido. As luzes ainda estavam acesas e eu pude ouvir sua voz em uma conversa exótica com os cães, como se eles fossem bebês.

O Som da Solidão {EM HIATO}Onde histórias criam vida. Descubra agora