Descobertas
Melissa
Eu estava feliz na casa de Benjamin. Aos poucos nós fomos nos acostumando a dividir o mesmo espaço físico e naquele ponto de nossa convivência dentro da mesma casa, eu sentia que a minha presença já não o perturbava mais, fazia muito tempo.
Depois de pôr todas as coisas em ordem, pelo menos aquelas das quais a organização cabia a mim, as horas, minutos e segundos pareciam se arrastar. Nos últimos dias, dei atenção especial para o jardim. Com os devidos cuidados, aos poucos ele estava ressurgindo para embelezar a fachada da residência. Ao que parecia, na primavera nós teríamos uma bela vista da janela, que ganhou mudas de violetas e orquídeas no parapeito. Ainda assim, me sobrou boa parte do tempo livre para cuidar de meus interesses pessoais.
Benjamin como sempre andava muito ocupado e certa hora do dia eu já não sabia mais o que fazer, ele sugeriu que eu desse uma volta para espairecer; visitasse minha amiga Clara no convento ou tomasse um sorvete. Mas diferente disso, eu decidi que depois de levar os cães para dar uma volta no quarteirão, leria mais algumas páginas do diário da minha falecida mãe, e foi o que fiz.
Forcei a memória para me lembrar onde havia o guardado da última vez em que o peguei para ler. Depois de encontrar exatamente como tinha deixado, embaixo do colchão, eu tranquei a porta do quarto e escorei a cabeça no travesseiro alto e macio, coberto por uma fronha de cor salmão, num tom próximo de rosa envelhecido.
Eu estava deitada de lado e com as pernas encolhidas, mas por mais que tentasse, não encontraria uma posição ideal para receber todas aquelas informações que logo chegariam e atingiriam meu peito como flechas, a cada novo parágrafo.
Ao menos eu não estava em pé.
À medida que li as verdades guardadas de dona Hortência, minhas pernas amoleceram e eu perdi a estabilidade. Meu olhar ficou confuso e meu coração errou uma batida quando visualizei algumas cenas que ela descreveu detalhadamente, com a maestria de uma escritora de romances premiados.
Eu pensei que a conhecia, verdadeiramente, mas sua história inacreditável fazia com que eu criasse inúmeras versões dela mesma, e eu jamais conseguiria saber qual delas era real, até que acabasse de ler a última palavra. Quanto mais eu avançava pelas páginas, sentia que os pontos de interrogação que surgiam em minha mente pesavam tanto quanto um martelo ao bater com precisão na cabeça de um prego, só que era a minha cabeça que estava doendo, latejando e eu precisava saber a verdade, toda a verdade, antes de ter uma crise.
"A oportunidade de emprego em São Paulo como governanta na casa dos Fonteles, não é apenas uma coincidência do destino. É óbvio que a proposta de trabalho não foi uma provisão divina. A chance de acertar as contas com o passado pode até não ter caído do céu, realmente, mas só aconteceu, de fato, graças a indicação de minha melhor amiga de infância, testemunha de tudo o que passei, cujo o nome tem grande influência religiosa, logo depois que a Sra. Marcela Fonteles passou a frequentar fielmente as missas semanais da congregação das Irmãs do Sagrado Coração. O site de empregos e a agência não passam de uma mentira, contada para Melissa, afinal ela é só uma criança, para que assim, eu pudesse me infiltrar na família novamente e depois de já estar dentro da casa onde habita a luxúria entre outros pecados que repudio, tomaria todo o cuidado necessário para não levantar suspeitas. Por isso não respondo às perguntas incessantes da garota a respeito de seu pai. Minha verdadeira intenção é descobrir o paradeiro do desgraçado e infeliz que me enganou e fugiu covardemente quando soube que eu estava grávida de uma menina".
Eu me senti enganada. Como Hortência pode me esconder tudo, durante todos esses anos? Me senti como um fantoche em suas mãos, enquanto ela brincava com a minha vida. Descobrir isso desta maneira rude foi cruel demais para mim. Eu não esperava. Confesso que não consiguia entender como ela pôde ser tão fria ao mentir para uma criança sobre a tal agência, o tal site, quando o emprego em São Paulo na casa dos Fonteles não passava de uma indicação de uma amiga, seguida de segundas intenções. Eu não podia crer que a minha vida havia sido manipulada desde o meu nascimento pela minha própria mãe e enquanto ela agia diante dos meus olhos inocentes eu não fui capaz de enxergar, porque sempre fui uma garota ingênua e o pior disso tudo é que segundo o diário, esta era uma característica que eu herdei dela.
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O Som da Solidão {EM HIATO}
General FictionMelissa era seu primeiro nome, para brindar a geração de mulheres de sua família com mais uma flor. Aparecida era o segundo, para glorificar a Nossa Senhora. Criada pela mãe e pela avó, Melissa desconhecia a paternidade e de todas as lições que apre...