Capítulo 14

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Impasse


Melissa

As situações enfrentadas nos últimos dias eram novidades para mim.

Eram completamente diferentes dos pequenos ciclos feitos de 24 horas habituais. Eu que já estava acostumada com uma rotina simples e regrada, estava experimentando pela primeira vez, uma vida de verdade, repleta de emoções. Desde o dia do acidente, como Rebeca mesma disse, algo mudou em mim verdadeiramente, mas só agora me dei conta de não foi apenas algo, mas simplesmente tudo.

O impacto que sofri não foi de todo inútil. Foi através dele que toda esta reviravolta se deu início e apesar das dores físicas não me permitirem esquecer, este fato também desencadeou uma avalanche de pensamentos e sentimentos que estavam sendo estreados no meio da avenida tomando uma propriedade maior naquela sala de hospital, quando recebi a proposta descabida.

Os batimentos cardíacos ganharam ritmo acelerado e o som das batidas compassadas aumentava à medida que Rebeca falava resoluta, diante de minha imagem perplexa. Por vezes, ela conseguia me deixar intrigada, já que oscilava entre rigor e bondade. Digo isso, porque me poupou uma vez, logo que cheguei aqui, permitindo que escondesse os fios de cabelo mais curtos dentro da touca. Agora, inexplicavelmente, estava me dando a oportunidade de agarrar uma chance única, que poucas, se não nenhuma outra noviça, teria antes de fazer seus votos definitivos.

O que eu haveria de ter feito para merecer tamanha regalia?

Enquanto eu a media, imaginava quem era Maria Rebeca por trás da capa de rigor que se escondia. Entre outras coisas, ela tinha algo em comum com a minha falecida mãe: ambas sempre demonstraram serem extremamente rígidas comigo. Rememorando os fatos vividos até hoje dentro deste convento, em todas as vezes que me recordo de Maria Rebeca se impor e ditar as regras, fazendo uso de sua autoridade, entendo que ela estava apenas tentando me proteger, demonstrando zelo e cuidado, porém, dentro daquela situação, eu estava cega e não conseguia ver isso.

A fé fervorosa era uma das características semelhantes à de dona Hortência. Imagino que se as duas tivessem a oportunidade de terem se conhecido melhor em uma outra época, teriam descoberto afinidades, e certamente compartilhariam de uma amizade tão bonita e sincera quanto a minha com a Clara, apesar de acreditar que o carinho de irmã que sentimos, uma pela outra, seja algo impossível de se comparar com qualquer outro sentimento ou relação divergente àquela que temos.

Pensando bem, só agora posso perceber que o gelo e o fogo são elementos completamente opostos, que estão totalmente ligados entre si. Isso me leva a crer que corações congelados queimam tanto quanto brasas acesas e, talvez por isso, eles tenham um modo singular de amar, muito mais intenso e profundo, assim como chamas que ardem em silêncio e desfazem a frieza aos pouquinhos, derretendo camadas de gelo, demonstrando amor em pequenas doses disfarçadas. Esta foi a maneira peculiar que minha mãe teve de me amar incondicionalmente e também me parece ser o jeito adaptado aos costumes estranhos de Maria Rebeca. Hoje, ao me dar conta disso enquanto dialogávamos, me senti completamente absolvida e aliviada por um instante, mas não menos tensa. Antes de levantar o queixo e erguer meu rosto totalmente, criei coragem para encará-la pela primeira vez, depois de nós duas termos nossas almas lavadas e nuas, livres de qualquer julgamento.

Finalmente as nossas máscaras caíram e imaginava que agora nós estivéssemos transparentes sob o olhar uma da outra, totalmente desarmadas. Mal sabia eu que havia muito mais coisas a serem reveladas, e toda a sujeira de uma vida inteira estava agora debaixo de nossos pés, pois fora varrida, permanecendo escondida embaixo do tapete, aguardando que alguém a encontrasse, e finalmente, todas as informações cruciais de um passado mal resolvido viessem à tona.

O Som da Solidão {EM HIATO}Onde histórias criam vida. Descubra agora