Capítulo 6

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Morto-Vivo

Benjamin:

Um ano.

E pensar que eu imaginei que não sobreviveria por mais que dez dias.

Eu poderia ter acabado com tudo. Posto um fim definitivo nesse lamaçal sem fim que se tornou minha vida, mas Marcela reprovaria isso. Ela era amante da vida. Viver, ela dizia, é um presente.

Havia dias em que eu ficava carrancudo por preocupações do trabalho e ela me olhava com reprovação. Eu conhecia aquele olhar. Significava que eu estava sendo ingrato com a vida tranquila que tínhamos. Percebo hoje que antes eu vivia, agora, eu só continuo, esperando pelo fim.

A ironia disso tudo é eu desejar a morte e ela simplesmente me ignorar! Estou esperando por ela, com sua foice, para me ceifar. Ela não vem. Levou Marcela e me deixou. Por quê? Dizem que os bons vão primeiro... Me atenho a isso. Marcela era boa demais. Boa demais. A saudade é demais. Não sou bom o bastante, não vou morrer tão cedo.

Pego um terno a esmo e visto por sobre meu corpo magro. Não é um magro bom, é um magro sepulcral. Ossos a mostra, olhos fundos nas órbitas, olheiras tomando conta da minha cara inteira, pois meus olhos já se acostumaram à companhia da insônia e resolveram presentear minha face com a marca escura das noites em que eles simplesmente não queriam se fechar.

É o mesmo terno —reparo, que usei no pior dia.

Descobrir a doença fatal foi terrível, julguei ser o pior dia da minha vida, me enganei;

Vê-la definhar e morrer em minhas mãos foi uma dor insuportável, declarei aquele como o pior de todos os dias. Me enganei;

O pior mesmo foi o enterro.

Odeio essa palavra com toda a minha força! Ela me causa uma espécie de nojo. Como se Marcela fosse nada além de uma coisa que merece que a terra a cubra. Marcela não merecia aquela terra úmida e fétida. Não merecia aquela caixa marrom, escura e morta ao qual a deitaram. Não merecia ser trancafiada nela e depois ser deixada no fundo de um buraco triste e sádico.

Quando me dei conta de que precisava levantar do canto em que estava jogado para ir me despedir de minha esposa eu praguejei. Praguejei tudo e todas as coisas. Mas reuni a força que me restava e me concentrei em estar decente porque Marcela merecia isso. Merecia meu amor em todos os instantes e não seria nesse que eu a abandonaria.

Tomei um banho gelado, o chuveiro queimou e eu não arrumei. Não chamei ninguém pra arrumar. Ninguém tinha permissão de entrar em minha casa. Dei férias a todos os empregados e dois meses depois despedi todos. A água fria se mesclou a minha pele e entrou em meu corpo, abraçando meu coração, tornando-o gelado, aos poucos. Com o passar do tempo todos os meus banhos seriam na mesma temperatura porque eu me identificava com a dor do frio. Me tornei frio a partir daquele dia.

Vesti o terno que Marcela mais amava e fiz de conta que iríamos sair. Que iríamos nos encontrar. Penteei meu cabelo e passei o perfume que ela havia me dado. Ela amava aquele perfume. Amava aquele terno. Me amava. Dizia que eu era bonito de qualquer jeito, mas naquele terno e com aquele perfume eu infringia as leis da beleza. Eu ria com ela, das palavras dela, da forma como ela me fazia sentir especial. Por tanto aquele terno era perfeito, seria nosso encontro e eu estaria como ela gostaria que eu estivesse.

Dirigi até a capela mortuária do Cemitério Parque Recanto da Saudade, mas na minha cabeça eu estava indo a qualquer parque, menos um tão intragável. Ao chegar fui recebido por minha mãe que correu para me abraçar:

O Som da Solidão {EM HIATO}Onde histórias criam vida. Descubra agora