Capítulo 15

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                                                                                          Morada

Melissa

Depois de acordos serem feitos, segundo os interesses individuais recheados de diferentes segundas intenções de cada um daqueles que me cercavam e as várias outras questões burocráticas que envolviam minha saída da congregação para experimentar uma vida simples e nada fácil, como a de qualquer civil, cidadão e trabalhador brasileiro, – temporariamente – estarem finalmente acertadas, tudo parecia estar resolvido, aparentemente. Na teoria, em uma carta escrita ou em um contrato assinado, tudo parecia ser descomplicado, até que as dificuldades se revelassem na prática.

Apesar de ser bem instruída e aconselhada por Rebeca, que demonstrou uma preocupação fora do comum para comigo nos últimos dias, muitas dúvidas e incertezas surgiram. Ainda estava confusa sobre minha decisão, apesar de não ser uma ideia repentina. O que me tranquilizava era saber que, até então, aquela não era uma sentença definitiva. Seis meses parecia ser tempo suficiente para descobrir se tinha feito a escolha certa.

Benjamin cuidaria de tudo. Foi o que me disseram. Confesso que estremeci ao ouvir aquilo. Logo me veio uma sensação estranha, como se de alguma forma a garota assustada estivesse segura. Mas além dos objetos pessoais que precisava organizar, havia outras coisas que eu precisava colocar em ordem dentro de mim, no meu enorme armário emocional.

Se ele não fosse tão marrento, eu não teria tido o trabalho de lidar com aquela caixa novamente. Nem cheguei a abrir antes disso. Não me pergunte o porquê. Eu, sinceramente, não saberia responder. Talvez tenha me faltado tempo, mas o mais provável foi ter me faltado coragem.

O pouco que eu conhecia o Sr. Benjamin era suficiente para imaginar o seu descontentamento ao ver imagens entrando em sua casa novamente. Tolerou isso por anos, mas o fez para agradar a Marcela, que sempre foi devota de Nossa Senhora Aparecida. Isso justifica a afinidade que ela tinha com a minha falecida mãe. Pensando nisso, decidi fazer uma espécie de reciclagem nos pertences que ficaram para mim, como uma espécie de herança. Entre todos os santos, as imagens maiores seriam doadas para a capela do convento. Ficaria apenas com pequenas lembranças, como os terços.

Pedi ajuda de Clara para abrir a caixa, que estava inconformada com minha partida, mas ao mesmo tempo feliz pela minha demonstração de coragem. Ela confiava em mim, assim como eu nela, e ainda que estivéssemos distantes fisicamente, nossos corações e pensamentos estariam sempre conectados.

Com a porta trancada e nossos hábitos erguidos até a altura dos joelhos, nós estávamos sentadas no chão, uma de cada lado da caixa de papelão. Começamos a tirar de seu interior vários objetos que eram na verdade peças de um misterioso quebra-cabeça. Me lembro bem de cada um deles, pois ainda estavam frescos na minha memória, desde quando os fui buscar na casa de Benjamin, já que coube a mim a difícil tarefa de encaixotá-los. Mas só agora as coisas começaram a fazer sentido.

Por um descuido, entre uma imagem e outra que era tirada de dentro da caixa, uma delas, – talvez a maior de todas, – deslizou de minhas mãos, para meu desespero imediato. Clara se assustou como se algo impossível de ser consertado tivesse sido quebrado. O gesso caiu como um fruto maduro e se partiu ao meio. Entre as duas partes divididas, descobri que aquele objeto religioso guardava um segredo, – ou talvez vários. – Um pequeno livro de capa preta, aparentando ser um simples caderno de orações ou um inocente livrinho de louvores que era na realidade um diário.

Clara e eu trocamos um olhar cúmplice, como se ambas soubessem o que a outra estava pensando. Imagino que meu aspecto mudou da água para o vinho ao ser tomada por uma curiosidade sem tamanho. Senti temor ao pensar em abrir e folhear suas páginas, mas imaginei que se minha mãe deixou este diário escondido, certamente ela desejava que as suas palavras fossem descobertas no momento oportuno. Caso contrário, teria o destruído antes de vir a falecer. Em meu interior, eu sabia que mamãe não partiria sem antes esclarecer os fatos. Seria injusto e egoísta de sua parte. Durante toda a história da humanidade, pelo que bem sei, somente uma gestação foi atestada ser fruto do espírito santo. Logicamente eu tinha um pai e estava determinada a conhecê-lo, nem que fosse a última coisa que fizesse antes de morrer. Imaginei que todas as respostas pelas quais eu desejei intensamente em um anseio sem fim durante todos esses anos, estivessem agora nas minhas mãos, assim como o meu destino.

O Som da Solidão {EM HIATO}Onde histórias criam vida. Descubra agora