Vermelho Vivo
Melissa:
Acordei com o som ríspido da cortina se dividindo quando Ana Clara abriu a janela desprovida de delicadeza, permitindo que a claridade tocasse meu rosto.- Parece que alguém dormiu mais do que a cama. - Ela ironizou.
- Acho que foi você quem caiu dela! Por acaso tinha espinhos no colchão? Que horas são? E o que aconteceu com o despertador? - Eu ainda nem tinha aberto os olhos totalmente e aquele gesto de Clara gerou em mim uma indignação fora do normal. - O que deu nela para me acordar desta maneira? - Uma dor enjoada e aguda começou a gritar na região do abdômen e aquela sensação chata me fazia pensar que deveria ser fome. Me senti úmida da cintura para baixo e acredite: aquela sensação era pior do que fazer xixi na cama. Parece que estávamos no final do mês e o meu corpo estava funcionando. Eu já deveria ter me acostumado, mas como tenho um ciclo irregular, talvez, eu nunca me acostume.
Eu estava enfrentando um processo natural extremamente difícil de lidar. Me pegou de surpresa e eu sabia que isto duraria alguns dias. Confesso, que sempre achei tudo isso muito esquisito, mas conforme os meses ficavam para trás e repetiam seus nomes, comecei a entender a maneira peculiarmente feminina que meu corpo tem de trabalhar, embora isto não signifique que está tudo bem. Porque não está.
Tudo estava exatamente no seu devido lugar. As cortinas nas janelas, as flores podadas no jardim e algumas mergulhadas dentro de vasos no saguão, em seu estado mais fresco, sabe? Tudo menos eu, que estava visivelmente diferente. Notei que a minha barriga estava inchada e meus nervos estavam à flor da pele. Meu humor estava tão instável quanto a posição de um elevador de um prédio movimentado e minha sensibilidade estava mais aguçada do que nunca. Talvez tudo pudesse simplesmente se resolver com uma barra de chocolate, mas eu me sentiria culpada. No meu caso, a gula não era um pecado, era um crime.
Depois de trocar e lavar as roupas de cama, eu precisava de um banho também. Estava me sentindo imunda. A água jorrava da ducha e percorria meu corpo, até a transparência dar lugar ao vermelho vivo do fluxo no ralo, me fazendo lembrar que eu estou viva. Tão viva e tão capaz de amar, quanto qualquer mulher de carne e osso. Porém qualquer manifestação de amor seria um pecado tão grande quanto à gula.
Depois de pôr ordem à própria vida, como se pudesse ter controle sobre ela, como sempre acontece, as horas transcorreram e eu as contei, acompanhando a volta sagrada dos ponteiros pelo relógio.
Fixado em uma parede de gesso, sob uma arquitetura religiosa e expressiva, no ponto mais alto, ele parece representar um Deus e quando o encaro, sinto que insiste em lembrar o pouco tempo que tenho. Arrogante, ele tem a prepotência de quem tem o destino nas mãos e contradiz simplesmente tudo o que entendo por Divindade, pois me parece ser impiedoso e não esperar por ninguém. De perto, aquele círculo que conta o tempo tem a grandeza do sol e à noite, parece ser uma lua cheia.
Os ponteiros passeiam por números romanos e eternos, que ficam espalhados e presos atrás de uma superfície vulnerável, acompanhando as voltas que o mundo dá.
Você já reparou na frequência com que as pessoas costumam dizer que a terra gira? Imagino que a rotação do planeta funcione exatamente da mesma maneira com que trabalham as engrenagens na minha mente. É engraçado, eu sei, mas embora eu saia de órbita às vezes, sinto que estou em plena sintonia com o universo.
O tempo não para, as horas correm, tudo muda e ando em círculos, como se estivesse presa dentro daquele relógio. Mas algo aqui dentro do meu coração diz que para tudo isto, existe um propósito maior. Gosto de fantasiar quando olho para o céu à noite. Da janela, eu vejo lá em cima uma tela escura infinita e inalcançável, com pequenos pontos de luzes espalhados, um mais brilhante que o outro. Esses pontos são claros como giz e com a ponta do indicador me deixo iludir. Meus olhos chegam até enxergar desenhos, que para minha mente criativa, fazem sentido. Depois de unidos, eu vejo que são os pontos mais distantes que formam os desenhos mais bonitos.
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O Som da Solidão {EM HIATO}
General FictionMelissa era seu primeiro nome, para brindar a geração de mulheres de sua família com mais uma flor. Aparecida era o segundo, para glorificar a Nossa Senhora. Criada pela mãe e pela avó, Melissa desconhecia a paternidade e de todas as lições que apre...