Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
brinca comigo, por favor?, a escolinha toda disponível e os olhos dele na maneira
como ela pegava as peças de lego, ele queria brincar com ela, não sabe por quê, não
imagina por quê, mas algo puxa o menininho para a menininha,
há sempre algo que nos puxa para as menores coisas do mundo, e são elas que
nos fazem grandes, não é?,
a professora sorri, quer não esquecer mais esta imagem, a ternura dele a pegar na
mão dela, o amor é bonito desde que começa, uma casa gigante sendo construída por
blocos de todas as cores, de todos os tamanhos, ela olha para ele com medo, esboça
um sorriso, lhe passa mais uma peça,
tome, é para você,
e acaba de produzir a mais pura declaração de amor que o ser humano consegue
produzir,
tome, é para você,
ele aceita e constrói, mesmo que os dois já estejam construindo,
brinca comigo, por favor?,
e ela disse que não, e brincou.
Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
lê comigo, por favor?, um pedido desesperado e feliz, só uma criança consegue
um estado de desespero feliz, são as primeiras letras que escrevem e deviam ser, se
eles soubessem como se desenha um «m», por exemplo, te amo, não são, ainda não
são, daqui a nada talvez, por enquanto são palavras mais simples, ele ao lado dela,
não agarra a sua mão nem lhe indica o caminho do «a» porque não pode, a
professora não deixa, mas já se olharam sete ou oito vezes nos últimos minutos, nada
ficou sem dizer, nunca fica,
quer vir comigo até o final do alfabeto?,
há um dicionário completo para conhecer, se a felicidade não é isto é algo muito
parecido com isto,
lê comigo, por favor?,
e ela disse que não, e leu.
Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
descobre comigo, por favor?, tocaram-se de leve no corredor, o braço esquerdo
dela no braço direito dele, ou se calhar foi ao contrário, o braço esquerdo dele no
braço direito dela, não se sabe quem tocou em quem, sabe-se que os dois sentiram o
toque como se conhecessem de repente o começo da pele, dois ou três milímetros,
meio segundo, não mais, e as veias mais dilatadas do que nunca, a escola secundária
não imagina mas duas pessoas acabaram de nascer ali, há partes do corpo que
surgem do nada, estímulos mentais absurdos, uma conclusão filosófica que só está
ao alcance dos gênios, ou dos idiotas,
o sentido da vida é de mim para você,
nenhum dos dois diz mas ambos ouvem, muitos passam anos à espera de uma
revelação assim, o corredor cheio, os grupos, as borbulhas, as ansiedades, os
pânicos, as invenções, as angústias, o medo disparatado de uma vida pela frente,
descobre comigo, por favor?,
e ela disse que não, e descobriu.
Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
mora comigo, por favor?, são adultos e querem ser grandes, amar como os
grandes, uma casa, um quarto para começar, pode até ser na residência universitária,
os pais não vão saber, e que se dane se souberem, andaram a vida toda à espera de
acordar e adormecer juntos e chegou a hora, ninguém vai impedi-los, ele vai arranjar
um emprego, um meio-período no McDonald's ou coisa que o valha, ela já pediu a
uma amiga de uma amiga de uma dona de uma loja de perfumes que lhe arranje um
turno, em breve estarão juntos sempre que estiverem em casa,
quando você acordar, me acorde para eu ver você acordar, sim?,
eles sabem que viver assim é passageiro, que sentir assim é passageiro, mas
também sabem que viver assim é eterno, que sentir assim é eterno, são jovens
inconsequentes e não sabem o que o futuro lhes reserva, ninguém sabe, mas estão
reservados um para o outro, é um bom começo afinal,
mora comigo, por favor?,
e ela disse que não, e morou.
Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
casa comigo, por favor?, não era o lugar mais romântico, um escritório no meio da
cidade, ela sem saber como responder, uma secretária da presidência não pode
abraçar assim um dos chefes do departamento criativo, já há colegas a olhar de lado,
há que disfarçar a felicidade, ele que voltara a recusar o elevador para chegar mais
depressa até ela se apertava no interior do peito, o suor escorria mas não importava,
olhava para os lábios dela à espera de que se mexessem, uma tensão inexplicável no
ar, alguém já pegou um café e já se sentou, só faltam as pipocas ou com um bocado
de sorte nem isso porque a máquina nova já está pronta para usar,
você só precisa assinar e me amar para sempre, só a parte de assinar é que é
nova, certo?,
duas ou três pessoas tapam a boca para não se ouvir o riso, a inveja, ela não tapa
nada nem responde, sorri como não consegue deixar de sorrir quando ele diz estas
coisas, e a verdade é que só ele é que diz estas coisas, ou só dele é que ela
consegue ouvir estas coisas, pode parecer a mesma coisa mas não é,
casa comigo, por favor?,
e ela disse que não, e casou.
Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
morre comigo, por favor?, o elevador do hospital cheira a perda, ele o recusou
como recusou sempre os elevadores, mesmo as escadas, havia que chegar mais
depressa até ela e não seria a sua velhice que lhe impediria a coragem,
antes de você estar doente doíam-me tanto as costas mas agora só me dói tanto
você, obrigado,
a cama branca, a pele branca, um líquido qualquer branco a entrar- -lhe pelas
veias, lágrimas tão grandes por chorar e um sorriso a sair,
você tem todos os capítulos da novela para ver lá gravados, quando é que vai
deixar de coisas e vir embora?,
ela estica os lábios como pode, ainda pode, quando o vê ainda pode muito, ainda
diz umas palavras, ainda acredita na possibilidade de para sempre, ele fecha os
olhos para engolir as lágrimas, respira fundo, pensa que ela não vê mas ela vê tudo,
uma faca insolúvel espetada no peito, amar é a certeza de um dia uma faca insolúvel
espetada no peito, e pouco mais, e ainda assim tudo,
morre comigo, por favor?,
e ela disse que não, e morreu.
Desceu pelo corrimão para amar mais depressa,
(...)
mas não havia corrimão
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Prometo Falhar
Romance"Prometo Falhar" é um livro que fala de amor. O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e...