Prometo Falhar Part 34

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  Querida mãe,
Querido pai:
O tempo passa sobre as lágrimas que eu choro, já nem cicatrizes tenho do que um
dia me feriu. E no entanto a memória. A cabra da memória.
Ninguém merece uma memória feliz.
E eu fui. E nós fomos. Felizes. A casa cheia com a nossa alegria dentro. O
quintal, o avô contando mil e duas vezes as histórias que já tinha contado mil e uma
vezes, a avó sempre preocupada em encher a mesa, os tios dizendo que a vida custa.
E custa, pai. E custa, mãe.
Ninguém merece uma casa vazia.
E os cheiros. Os cheiros não passam. Os cheiros são a melhor forma de sofrer.
Cheiro a cozinha onde um dia a vida. Onde um dia o sonho. Eu menino na cozinha
cheia do avô, da avó e dos tios. Eu menino sonhando com eu grande, grande como os
tios — «um dia vou ser rico e comprar muitas coisas». Eu menino querendo crescer.
Ninguém merece um corpo que cresce.
E a perda. A puta da perda. A avó com um câncer dentro. O avô cedendo a cada
dia que a sua Maria ia embora. E os tios e as rugas. Todos indo embora a cada dia
em que eu crescia. E tudo morre quando morrem os nossos sonhos.
Ninguém merece ficar além dos sonhos.
E já não há avó e já não há avô. Há o cheiro da cozinha quente com os meus
sonhos dentro. O cheiro do quarto onde eu me escondia, debaixo da cama, para ver
os adultos falarem. As palavras novas, palavras grandes, palavras feias. O abraço
apertado do tio André — «você está ficando grande, rapaz» — nas minhas costas de
criança. A casa vazia com o que sou dentro.
Ninguém merece sobreviver ao que mata.
E ter um pai e uma mãe. Só quando a casa se esvazia é que se sabe o que vale um
pai, o que vale uma mãe. E não interessa o que foi, o que ficou por ser. Não
interessam as palavras que um dia dissemos, os erros que um dia não evitamos
cometer. Não interessa a voz grossa do pai — «você tem de ser um homem sério»
— nem a dor muda da mãe. Não interessa o que se perdeu quando se tem um pai e
uma mãe para apertar. Ainda estamos, mãe. Ainda estamos, pai.
Ninguém sabe o que é perder quando ainda tem uma mãe e um pai para abraçar.
E enquanto eu tiver os seus ombros para pousar nenhuma lágrima morrerá solteira.  

Prometo FalharWhere stories live. Discover now