Para que serve um chão senão para ser pisado por você?
Você era criança e o corpo pedia sorrisos, as corridas na rua (aquela onde os
carros agora não deixam correr, sabe?), jogar escondido com o corpo como agora
com a alma; eu era criança mas tinha mania de ser adulto, não queria corridas na rua
nem jogar escondido, apenas pedir ao corpo para crescer, à escola para acabar e à
vida para me levar para longe dali. Se eu gostasse de lugares-comuns não podia
gostar do lugar onde você está.
Para que serve um corpo senão para transmitir o seu?
Vivíamos vidas diferentes e estávamos tão próximos, não havia mais do que uma
parede entre nós, e também a sua mãe (tão linda, a sua mãe) e a minha (tão linda, a
minha mãe), as palavras eternas delas («vem para dentro, filho, que está ficando
frio», «vem para dentro, filha, que está escurecendo»), o medo de que todo mundo
desabasse sobre as nossas costas; as primeiras palavras que eu te disse foram
«ganha juízo, menina» quando você me disse que um dia ia ser uma estrela de
cinema (você estava com aquele vestido cinzento que hoje a sua filha usou,
lembra?), e depois te virei de costas e você ficou, eu sei que ficou, me vendo ir, sem
sequer perceber as suas lágrimas e todo o seu castelo de sonhos a desabar.
Para que serve uma lembrança senão para te trazer?
Um dia a rua deixou de ser a nossa, eu fui para o casamento (com a Joana, aquela
carrancuda que morava junto ao açougue, sabe?), você foi para a universidade
(aposto que aí você já soube que você era estrela sem precisar de cinema), e tudo o
que o tempo fazia era nos separar, nos separar cada vez mais, todos os caminhos me
levando para longe de te ver.
Para que serve abrir os olhos se você não estiver à minha frente?
Até a rua parou quando de repente os seus passos. Um atrás do outro, a porta do
escritório se abrindo e toda a minha paz se fechando. Você entrou, pediu «com
licença», acrescentou «vim para a vaga de editora», e nenhuma palavra em mim
poderia ser editada, escrita, revista; você disse que vinha para a vaga de editora e eu
percebi que você vinha para a vaga de minha dona.
Para que serve obedecer se não existirem as suas ordens?
Eu te obedeci, feliz, os dois anos mais felizes da minha vida fazendo recados, te
servindo cafés, tentando te olhar para que você soubesse o quanto eu te queria, e ao
fim dos dois anos mais felizes da minha vida você disse simplesmente «ganha juízo,
rapaz» quando eu te disse que um dia queria acordar ao seu lado. E você tinha
razão, como eu tinha razão. Nunca cheguei a acordar com você como você nunca
chegou a ser uma estrela de cinema. Mas nem isso me fez desistir de você nem isso
te fez desistir de ser uma estrela de cinema. Você foi para Hollywood à procura de
brilhar e eu fui para Hollywood à procura de você. Um dia um de nós vai ganhar
juízo. Espero que seja você.
Para que serve ter cabeça se não for para pousá-la em você?
YOU ARE READING
Prometo Falhar
Romance"Prometo Falhar" é um livro que fala de amor. O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e...