Tanta gente sem teto,
e no entanto o déficit baixou e a economia está crescendo,
hoje adormeci pensando num novo livro, um romance com pessoas que não
existem e que já começam a me povoar, pode muito bem ser uma patologia mas faço
arte dela,
há que aproveitar o que temos, não é?,
mas acabei por adormecer pensando na sorte de poder adormecer pensando num
livro e não na fome, ou em como comer no dia seguinte, ou até na roupa e nos
sapatos rasgados das crianças,
que merda vale um livro quando não se tem um pão?,
e a literatura é muito pouco perante a vida, faço muito pouco para mudar o
mundo, sento-me nesta cadeira confortável, o mar em frente,
é preciso ver a realidade de longe para não doer, não é?,
e escrevo palavras que às vezes não sei aonde querem chegar, como estas, por
exemplo, em que no fundo só pretendo limpar a consciência de não fazer mais para
quem vale tanto como eu mas não encontrou o mesmo espaço, o mesmo caminho,
às vezes basta uma vírgula para mudar uma vida, não é?,
escreve-se porque se é covarde, há tantas coisas úteis para fazer lá fora, ajudar
um velhinho a atravessar na faixa de pedestres,
ontem um garoto quis me dar um lugar no ônibus e eu o mandei catar coquinho e
por pouco não lhe acertei um tabefe na cara,
onde é que já se viu uma criança dar o seu lugar para outra, não é?
ou limpar as praias, ou o oceano, esfolar-me todo, como dizia o meu avô, quantas
casas ajudou a nascer?, e eu nenhuma,
sou tão inútil, teria de ajudar o mundo a crescer, sei lá, mas sou covarde e escrevo
umas porcarias quaisquer, cheguei a acreditar que fazia a diferença, imaginei uma
mulher à beira do abismo e uma frase minha a puxá-la para cima,
a melhor literatura é a que salva vidas mas só a que mata ganha prêmios, já
pensou nisso?,
sou tão incapaz de ter coragem, dar um berro, dedicar-me a atividades felizes,
dançar, cantar, contar anedotas, fazer um filho, até,
serei sempre o filho, nunca o pai, não é?,
e o pior é que nunca deixo de escrever o mesmo livro, mais vírgula menos vírgula,
mais pronome menos pronome, com mais estilo ou menos estilo, ando por aí
escrevendo um só livro e só isso me satisfaz,
como se adormece com um livro inteiro para escrever e só uma vida para viver?,
e apesar de tudo as pessoas lá fora, como conseguem?,
viver é tão mal pago, meu Deus,
é preciso fazer da sopa um banquete, talvez, como eu gostaria de estar lá fora,
berrar aos cabrões que assim não pode ser, que não existe país sem pessoas, ou
números sem alguém que os conte, mas escrevo e me satisfaço assim,
sou fraco e espero que a minha fraqueza faça alguém forte, não é?,
há uma mulher em apuros lá embaixo e a altura é de tirar os óculos, o que não se
vê só se sente, sinto muito,
há cada vez mais pessoas em escombros pelas ruas,
e no entanto o déficit baixou e a economia está crescendo

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Prometo Falhar
Roman d'amour"Prometo Falhar" é um livro que fala de amor. O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e...