De maneira que comecei a te amar pelos pés, eu trabalhava na sapataria do centro
comercial,
ou shopping, sei lá eu como aquilo se chama corretamente,
e você chegou, o seu sorriso, estava com pressa mas queria o sapato perfeito,
gostei logo dessa sua forma de mostrar que era exigente mas com o menor esforço
possível,
a vida é pequena demais para perdermos tempo gastando energia em algo que não
envolva amor,
você tinha o pé mais bonito do mundo e eu me senti um rei ao ser o seu
empregado, uma loja de calçados pode muito bem ser um reino quando estou aos
seus pés,
em pouco tempo você encontrou o que queria, sapatos verdes pouco vistosos que
só serviam para te tornar mais impossível, e foi embora,
você sabe que eu senti o espaço entre mim e o mundo aumentar enquanto você ia
embora?,
esperei que você voltasse um outro dia mas você demorou umas quatro ou cinco
semanas, os seus pés outra vez, a minha felicidade outra vez, mas em pouco tempo
percebi que já não me bastavam os seus pés, eu queria mais de você, subir por você,
como se convida Deus para ser nosso amante?,
eu podia até te convidar para sair, beber um copo, te falar de mim e contar que já
te amava, mas preferi mudar de loja e em menos de sete dias já estava na butique da
Andreia para te receber,
não havia roupa que não fosse feita pensando no seu corpo, você vinha pelo
menos uma vez por semana, aqui você já se abria mais e já me era permitido olhar
para o seu corpo,
não é que eu não estivesse ainda apaixonado pelos pés, você percebe, não
percebe?,
você gostava sobretudo de vestidos curtos, não curtos demais,
tenho idade para ser bonita mas não para ser rameira, você dizia muitas vezes à
Andreia e a inveja que eu tinha dela,
um dia vou ter uma loja só para te tratar por você
eu estava viciado em você, nos seus pés, na maneira como a roupa tocava e
amava o seu corpo, mas fui querendo devagar o seu rosto, estava subindo pelo
exterior de você e faltava aprimorar o que eu via em você,
eu podia até te convidar para sair, beber um copo, te falar de mim e contar que já
te amava, mas preferi mudar de ramo e em menos de sete dias já estava na loja de
maquiagem do primeiro andar para te receber,
como você imagina não foi fácil, longe disso, um homem fazendo maquiagem
ainda não é fácil de engolir nos dias de hoje, um curso rápido no centro de emprego,
uma palavra amiga aqui e outra ali, até que eu consegui,
e o seu rosto era uma espécie de eternidade, e só digo espécie porque não
acredito que a eternidade seja tão interminável assim,
você vinha nos dias de festa,
só não uso maquiagem quando tenho um evento importante, uma festa ou coisa
assim, você explicava, e fazia exatamente o contrário de todo mundo, você se
maquiava para ir ao banheiro, para ir à casa dos seus pais, mas nunca para uma
festa,
foi aqui que comecei a te tocar de verdade, olha o meu arrepio só de lembrar, está
vendo?,
a sua pele não existia por mais que eu a tocasse, se eu tivesse dúvidas de que
você veio de uma nuvem elas acabariam aí, no momento em que pela primeira vez
as suas maçãs do rosto, a sua testa, uma luz imperdoável na loja toda, isso sem falar
nos seus lábios, você escolhia sempre o batom mais discreto e quando saía de lá
tenho certeza de que até a zona da restauração parava para poder te olhar, era uma
sorte eu poder apreciar os seus lábios por fora mas havia em mim a urgência de
conhecê-los por dentro,
eu podia até te convidar para sair, beber um copo, falar de mim e do quanto eu já
te amava, mas preferi mudar de loja e em menos de sete dias já estava na confeitaria
junto à entrada do cinema para te receber,
foi uma missão complicada mas cheguei lá, as pessoas já me olhavam como o
empregado maluco e tinham razão, eu sabia muito bem que seria difícil mudar de
novo para outra loja qualquer mas não podia deixar de tentar, convenci a Dona Laura
de que era um especialista em balas e na verdade até era,
eu sabia com exatidão a curva do seu lábio inferior, o ângulo absoluto do encaixe
do superior nele, se isso não é entender de balas não sei o que é,
você ia à loja sempre que queria se mimar, todos os dias, portanto, gostava
daquelas balas de Coca-Cola, ainda nem tinha pago e já estava com duas ou três na
boca, não era elegante mas era você,
a elegância é o momento em que você acontece, só isso,
eu sentia uma cobiça inaceitável e lentamente senti que o interior da sua boca é a
melhor coisa do mundo mas talvez o interior da sua roupa fosse a melhor melhor
coisa do mundo,
desculpe o estado repetitivo das minhas construções frásicas mas escrever um
estado acima da felicidade é difícil porque parece que não mas ninguém o sentiu
antes de mim,
como eu te dizia queria mais do que o interior da sua boca, queria o interior da
sua roupa e precisava tomar atitudes nesse sentido,
eu podia até te convidar para sair, tomar um drinque, falar de mim e contar que já
te amava, mas preferi mudar de profissão e em menos de sete dias já estava na
academia do centro da cidade para te receber,
não creio que alguém tivesse feito um curso de massagista tão rápido como eu,
foram duas semanas intensas mas eu fui até o fim, fiz os testes todos num só dia,
cheguei em casa e nem sabia onde colocar os braços,
por acaso até sabia, bastava colocá-los em você e eu estaria pronto para mais três
ou quatro cursos iguais na sequência,
você gostava mais do que tudo que te passassem a felicidade pelas costas, era fiel
à Marisa havia mais de cinco anos, todas as semanas estava lá para ela te libertar do
peso dos dias,
uma executiva de sucesso como você sofre tanto para se impor, não é?,
já não sei bem como mas eu a convenci a ficar de folga no dia em que você vinha,
provavelmente até tive de sair com ela só para poder te tocar, mas quando de
repente a pele do final das suas costas nas minhas mãos senti que podia morrer ali,
não sei se não morri mesmo, sério, pode ser que seja do céu ou do inferno que te
falo agora,
eu tinha enfim o interior da sua roupa, os pés, o seu exterior todo, o seu rosto, os
seus lábios, o interior dos seus lábios, eu não podia pedir mais nada à vida mas não
podia deixar de pedir, sou humano e queria mais,
foi então que decidi te convidar para sair, beber um copo, te falar de mim e do
quanto eu já te amava, podia até mudar de loja,
mas nem pense que eu ia trabalhar numa sex shop.
A morte está atrás do seu beijo,
e não me interessa nada que não possa me matar.
Não quero trajetos sem pedras, pessoas sem problemas, muito menos glórias sem
lágrimas. Não quero o tédio de só continuar, a obrigação de suportar, andar na rotina
só por andar. Não quero o vai-se andando, o é a vida, o tem de ser, nada que não me
faça gemer. Não quero o prato sempre saudável, a saladinha pura, a cama casta, o
sexo virgem. Não quero o sol o dia todo, a reta sem a mínima curva, não quero o
preto liso nem o branco imaculado, não quero o poema perfeito nem a ortografia
ilesa. Não quero aprender apenas com o professor, a palmadinha nas costas, o vá lá
que isso passa, a microssatisfação, a minúscula euforia. Não quero os lábios sem
língua, a língua sem prazer, fugir do que mete medo, e até me acomodar no que me
faz doer. Quero o que não cabe no regular, o que não se entende nos manuais, o que
não acontece nos scripts. Quero a ruga esquisita, a mão descuidada, a estrada
arriscada, a chuva, o vento, as unhas cravadas, o animal do instante. Quero ainda
tentar o que ninguém fez, olhar para o imperdoável, gastar como um louco as
possibilidades. Quero sobretudo o que me assusta, o abismo em segredo, o interior
das suas pernas, a maneira como o suor escorre no centro do seu peito, e a forma
impossível como você se exprime quando vem.
Me disseram que o seu beijo matava e eu não liguei,
há alguma maneira de sair com vida de você?

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Prometo Falhar
Romance"Prometo Falhar" é um livro que fala de amor. O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e...