Ainda não sei como descrever o barulho do vento, por exemplo, já o ouvi como se
Deus estivesse no interior dele, e no meu, já o percebi como a voz da dor me
ensinando a gravidade da vida, já me mostrou que até a alegria pode ser ouvida, e há
tantas maneiras de estar vivo quantas de ouvir o vento, de olhar o vento, talvez,
viver é insuportável e é tão bom, porra.
Ainda não descobri quantas lágrimas cabem no rosto, aposto em três mil, mais
uma ou duas, no máximo, há muitos motivos para chorar e nem todos são bons,
felizmente, o que seria de mim sem saber o instante do choro, a forma como dilata a
existência, a sensação de que estou encontrando o começo de mim, o milímetro onde
a emoção começa?, espero pelo menos mais um milhão de lágrimas até o final da
vida, e é uma expectativa otimista, claro,
viver é insuportável e é tão bom, porra.
Ainda não provei Nam Tok Moo, uma combinação de carne de porco grelhada
combinada com menta, suco de limão, chili, cebolinha verde, molho de peixe e arroz
tostado, ainda não provei Torta do Pastor, os pedaços de carne de cordeiro cobertos
por purê de batata, as coisas que nós sabemos através do Google, nem Massaman
Curry, toques apimentados e doces, combinados com leite de coco e com muito
curry, muito menos Porco Kalua, Goi cuon, Lechon, Fettuccini alfredo, tanta coisa,
tanta coisa, morrer é abandonar a boca a tanto prazer por ter, eu gostaria de provar
toda a criatividade do homem, mas só me restarão umas cinco ou seis mil
oportunidades, tenho de aproveitar, é certo,
viver é insuportável e é tão bom, porra.
Ainda não andei a trezentos quilômetros por hora, nem sei se quero, um dia
decido, ainda não experimentei as posições todas do Kama Sutra, e estou ficando
velho para algumas, felizmente conheço médicos e eles me ajudam se alguma coisa
correr mal, ainda não disse um milhão de vezes ao meu pai que o adoro, mas estou
lá perto e bem vistas as coisas um milhão é pouco para algo infinito assim, ainda não
abracei a minha mãe e lhe dei um beijo na testa até que os lábios secassem e os
braços cansassem, pode ser agora mesmo, quando acabar este texto, ainda não
escrevi a obra-prima e só tenho por volta de setecentos mil milhões de frases para
tentar, mais algumas, provavelmente, tenho certeza de que vou morrer de caneta na
mão, ou de computador no colo, a última frase será qualquer coisa como
«Desculpem qualquer coisinha, mas leiam, e sobretudo amem.», ainda não me
besuntei todo de chocolate, ainda não rebolei na areia depois de vir do mar vezes
suficientes, ainda não fui à Lua, nem a Marte, nem sequer à China, e sei lá eu onde
há mais extraterrestres, não é?, ainda não joguei em Alvalade, nem no D. Afonso
Henriques, nem na Luz, nem no Dragão, ainda não subi ao palco do Coliseu,
minto, já subi, mas foi em reportagem e isso não conta, ainda não vendi trezentos ou
quatrocentos ou quinhentos mil exemplares, ainda não salvei vidas suficientes, ainda
não azucrinei a cabeça da minha sobrinha o tempo que quero, ainda não inventei
palavras que me satisfaçam, ainda nem sequer atirei bolos à cara do meu melhor
amigo, ainda não vi os meus alunos ganharem o Nobel, ainda não me deu vontade de
dançar em cima do balcão de um bar, e dançar mesmo, ainda não calei mais uma vez
os desgraçados que me dizem que não serei capaz de fazer o que já acabei de fazer,
os que ainda ontem me asseguravam que eu não chegaria aqui hoje, ainda não
mostrei aos meus filhos que o pai só consegue porque faz, porque chora, porque
arrisca, porque se expõe, porque não quer estar parado nem aguentar, ainda não
apertei os meus gatos até senti-los no meio dos meus ossos, ainda não, ainda não,
por favor ainda não, ainda não estou pronto para morrer, nunca estarei, só mais um
minuto, afinal de contas vai ser essa a minha última frase, «Ainda não.», com
exclamação, «Ainda não!», odeio exclamações e vou usar a primeira quando for a
última, «Ainda não!», e é tão pouco, tem de ser mais, mais desesperado, mais
urgente, mais absoluto, «AINDA NÃO!», não basta mas é o que há, nenhuma língua
está preparada para a morte, não há recursos que cheguem para ela, o pior não são
as línguas mortas, são as línguas na morte, incompetentes, incapazes, como eu, ainda
não, por favor, mas tem de ser, admito, mas nunca aceitarei, nunca, nunca aceitarei,
quando for ficarão em dívida comigo, serei credor para sempre, que isso fique
escrito, e agora está, que a justiça cobre sem misericórdia,
viver é insuportável e é tão bom, porra.
Ainda não sei sobretudo a cor da sua cueca hoje, e isso é o que mais me custa,
confesso,
agora já sei, que maravilha,
e agora já não sei outra vez
(ou esqueci, vá),
o chão que a aproveite, sortudo,
viver é insuportável e é tão bom, foda-se.
A primeira vez que te vi foi na rua das sapatarias, você estava impecável mas
deixou cair um poema,
ninguém é perfeito, nem você, me deu vontade de pegá-lo logo e te devolver, mas
faltou coragem e eu acabei ficando com ele para mim, há poemas que têm de ser
guardados do mundo, todo mundo sabe disso ou se não sabe devia saber,
pode mesmo morrer a poesia que haverá sempre poemas,
os loucos riem diante daquilo que faz os outros chorarem, e ainda são chamados
de malucos,
isso só para dizer que eu sou maluco por você, e que te segui desde esse dia, eu
tinha uma consulta no dentista mas não me parece importante me dedicar a
banalidades se há um poema para devolver e não se sabe como,
entre a saúde dentária e a poesia há um naufrágio completo, o verso é inútil e só
um burro não sabe que é a coisa mais importante do mundo,
depois de você, claro,
você foi ao supermercado, comprou dois pacotes de leite, um de açúcar e meia
dúzia de laranjas, depois entrou num prédio de escritórios,
a maneira como você caminha me prova sem dúvidas que Deus não nos ensina a
viver mas pode muito bem nos ensinar a andar,
te esperei na porta, quatro ou cinco horas, você veio com um homem que tive
medo de que fosse seu marido mas depois vi que não era, ele foi para um lado, você
para o outro, e eu para você, fiz sem pensar mas a gostar, admito,
a rima não foi proposital, desculpe,
os loucos constroem aviõezinhos com aquele papel verde que os outros veem
como motivo para matar se for preciso, ou até se não for preciso, e ainda são
chamados de malucos,
isso só para dizer que eu sou maluco por você, e que todos os dias te amei sem
que você soubesse, em pouco tempo eu já sabia exatamente as suas rotinas, aonde
você ia, o que fazia, com quem saía, você era uma mulher livre e eu podia ter sido
um herói se te dissesse alguma coisa,
me perdoe se você é impressionante demais para eu ousar te tocar, sim?,
um dia você não apareceu no ponto às sete e meia da manhã, o ônibus veio e você
não estava, na segunda-feira você estava sempre ali, àquela hora, normalmente viria
com o suéter azul, o casaco de pele marrom, o jeans justo.
você faz de uma calça jeans um vestido de gala e ao mesmo tempo uma minissaia
sensual, deixe que te diga desde já,
eu podia te dizer muito mais, te elogiar da maneira possível, te dizer as minhas
frases de desgraçado, mas a verdade é que estou muito ocupado tentando saber de
você,
onde você está que eu preciso amar com urgência?,
te procurei por todo lado e nada, no escritório ninguém sabe de você,
foi ontem e você não voltou, já telefonamos e ninguém atende, ninguém sabe dela
e há muitos relatórios para fazer, haja irresponsabilidade, não é?,
os seus vizinhos não viram você sair,
a última vez que te vi foi ontem à noite e me pareceu estranha, tenho de confessar,
em casa você não está que eu já espiei pela janela, andei pelo parapeito e quase
caí,
você vale bem uma queda de um segundo andar, até eu que sou eletricista e não
percebo patavina de economia sei disso,
já fui a hospitais e nem sinal de você, ainda bem, me deixe respirar fundo agora,
onde você está que eu preciso de um motivo para viver?,
afinal você foi para uma ilha qualquer no meio do Pacífico e nem avisa, quanto
não vale ter amigos nas agências de viagem e ser a mulher mais inesquecível do
mundo?,
não sei se você volta, na verdade, talvez seja hora de renunciar, não tenho você
aqui para ver e não sei se será possível continuar a estar apaixonado por quem não
me conhece, o que você acha?,
os loucos veem no impossível todos os motivos para continuar enquanto os outros
veem todos os motivos para desistir, e ainda são chamados de malucos,
isso só para dizer que eu sou maluco por você, e que o meu avião chega aí por
volta das dez,
me espera com o jeans da Levi's?,
e ela esperou,
para maluco, maluco e meio, ou então dois,
e viveram malucos para sempre, provavelmente felizes também,
já pode beijar a noiva, se quiser,
ele quis, beijou-a, abraçou-a,
e lhe entregou finalmente o poema.

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Prometo Falhar
Romantizm"Prometo Falhar" é um livro que fala de amor. O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e...