«Moro num país em que a pobreza está legalizada»,
e Guilherme (nome fictício para algo que deveria ser ficção) passa a mão direita
pelo olho do mesmo lado, esfrega uma e outra vez a pele molhada, as rugas
mostrando que não é só por dentro que o tempo passa. Tem setenta e um anos, toda
uma vida de trabalho para trás, e agora o que lhe resta é a casa caindo de sempre no
bairro acabado de sempre.
«Moro num país em que a pobreza não é crime»,
a mão sempre nas lágrimas, as pessoas ao redor olhando com medo.
«Um pobre assusta as pessoas, sabe»,
você me pergunta, os olhos grandes e azuis como quem pede desculpas pelo
cheiro de quem não sabe o que é água quente há anos, as mãos que se mexem como
se procurassem o motivo para a vida.
«Às vezes, por uma questão de respeito, desisto de estender a mão e de pedir, sei
que as pessoas têm os seus problemas e não querem saber de mim. Nesses dias opto
pelos caixotes do lixo e até nem tenho me dado mal»,
ele conta, e consegue sorrir o sorriso mais corajoso que existe, e desta vez já são
as minhas lágrimas que querem sair; aguento e prossigo, pergunto-lhe o que fazia, o
que o levou ali, àquele pedaço de nada numa vida tão grande que se foi.
«Trabalhei em obras, tive uma mercearia, depois até abri um restaurante, veja só.
Mas depois veio esta coisa da crise e eu tive de voltar aos trabalhos forçados. Mas
ninguém me queria. Eu já era velho demais para trabalhar e ainda era novo demais
para deixar de trabalhar»,
ele para um segundo, talvez dois, e continua, as lágrimas pararam mas a cabeça
não.
«Era velho demais para viver e novo demais para morrer»,
as vidas de todos os velhos deste país, e de tantos velhos neste mundo, definidas
numa frase, eu quero abraçá-lo, pedir que venha comigo para casa, dizer que farei o
que puder e o que não puder para que nada lhe falte, mas nada lhe digo: sei que se
há algo que não lhe falta é o orgulho que resta a quem já nada tem.
«Já houve quem quisesse me ajudar, me dar uma vida longe daqui, onde houvesse
água da boa para beber e comida da boa para comer. Mas eu não quero. Trabalhei
demais para aceitar morrer de esmolas»,
a expressão fica na minha cabeça, ele a explica, talvez haja outra lágrima quase
saindo.
«Viver de esmolas não existe, sabe? Viver de esmolas não existe. Quem anda
pedindo esmolas está morrendo de esmolas, e eu trabalhei tanto, tanto, sabe? Não
quero o que não mereço, nunca quis o que não merecia. Só quero o que me disseram
que eu ia ter, mas aqui neste país, não sei se eu já te disse, a pobreza não é crime,
parece que os políticos que lá estão a legalizaram»,
ele revela, e mostra um jornal tão gasto como a pele dos braços, a notícia de um
orçamento qualquer de Estado aprovado cobrindo toda a primeira página.
«O que eles querem é que a corja tenha medo de ficar como eu. Nada assusta
mais do que a pobreza, não sei se eu já tinha dito a você. A pobreza não é o fim mas
é um final movente, vai acabando conosco por dentro, vai nos levando aos poucos;
começa pelo orgulho, depois leva a autoconfiança, até que, se não estamos atentos,
ficamos sem nada, nos resta pedir e ficar nas mãos de quem nos pôs assim. Mas a
mim esta gente não leva. A mim esta gente não leva»,
as palavras abanadas como uma bandeira, branca de paz e nunca de rendição,
cada vez mais pessoas à nossa volta, a noite caindo e, ao longe, no céu, a promessa
da chuva quase chegando.
«O que eles querem é que a gente se refugie da chuva, entende? Querem que a
gente tenha medo de se molhar e se refugie da chuva, e que por isso, para isso, faça
o que eles querem. O que eles querem é que nós todos sejamos cordeirinhos, e eles
dizem vai e nós vamos, e eles mandam fica e nós ficamos. Estamos todos como
estamos agora, mesmo agora, a chuva quase caindo e cada um de nós precisando
escolher se se abriga ou se se deixa ficar»,
até que a chuva começa mesmo, as pessoas correndo, os cafés a encherem ao
redor, os toldos das lojas ocupados, eu e Guilherme sozinhos no meio da rua.
«Está vendo como todos fogem? É isto que eles fazem»,
outra vez o jornal abanado, as folhas molhadas caindo aos pedaços. «Ameaçam
que vem chuva, fazem chover mesmo, e as pessoas fogem dela, é mais fácil fazer de
conta que se aguenta assim; as pessoas preferem ficar recatadas, escondidas do que
molha. Mas olhe: a minha avó, Deus a guarde num lugar especial, sempre me disse
que quem anda na chuva se molha, e eu prefiro ficar todo encharcado a estar só
levemente molhado, sabe? Se é para molhar que sirva para lavar, ela me dizia»,
a rua deserta, eu e ele ensopados, e por alguns momentos até as rugas parecem
desaparecer debaixo da água.
«Todas as águas servem para sarar. Não vai ser no meu tempo mas tenho certeza
de que um dia as pessoas vão perceber que todas as águas servem para sarar, e aí a
revolução chega. Aí a revolução chega. Vou morrer, fique o senhor sabendo, com a
esperança da revolução, e até não é uma maneira feia de se morrer, não?»,
ele sorri, a vida perdida nos dentes perdidos, passa a mão pelo meu ombro, dá
uma palmada amigável nas minhas costas, e segue o seu caminho, a chuva e a
silhueta dele, a noite a fechar-se, e uma recusa final quando eu lhe pergunto se quer
que o acompanhe ou que o leve a algum lugar:
«Deixe estar. Eu fico aqui onde chove.»
E fica. E fica.

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Prometo Falhar
Romance"Prometo Falhar" é um livro que fala de amor. O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e...