CAPÍTULO 4

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Sentada ao lado do marido, frente a lauta mesa ricamente adornada, saboreando o licor delicioso. Norma sentia-se orgulhosa e feliz.
Desde a cerimônia de casamento na igreja maravilhosamente adornada e repleta de finíssimos convidados até a grande recepção que Dagoberto e ela estavam oferecendo no clube, Tudo estava decorrendo com brilho e alegria.
Dagoberto gastara muito dinheiro, mas valera à pena. Claro que ele não aceitaria a cooperação do Dr. Vasconcelos, pai de Marcelino. Cabia ao pai da noiva oferecer a recepção, e eles não se furtariam a esse dever.
Estava felizes. Era a primeira filha a casar-se e estavam orgulhosos. Vera havia conseguido fazer um excelente casamento. Viajariam para a Europa onde ficariam dois meses e ao regressar, iriam residir no Jardim América, no magnífico palacete do Dr. Vasconcelos, em aposentos que Vera decorava com luxo e bom gosto.
Olhando o jovem casal que dançava feliz, Norma comoveu-se. Sua filha começaria a vida em melhores condições do que ela. Dagoberto, embora de tradicional família, ao casar-se não era rico, e eles não foram ao exterior na lua-de-mel. Em sua casa havia dois empregados, enquanto que no palacete do Dr. Vasconcelos havia mais de dez. Vera ajustara uma só para ela, além de um motorista.
Observando Clóvis que dançava com uma graciosa garota, pensou:
- Meus outros filhos terão a mesma sorte que Vera? - Duvidava um pouco.
Clóvis finalmente conseguira passar para o segundo ano da faculdade, depois de haver repetido duas vezes seguidas. Se ao menos ele se interessasse mais pelo estudos!
Nem podia pensar em casar-se, a não ser que fosse com moça rica. Mas Norma não gostaria que isso acontecesse. Seria humilhante para ele!
Instintivamente procurou Juliana com os olhos. A moça estava sentada do outro lado da mesa, fisionomia calma, olhando os pares que dançavam com animação. Ela estava linda, com um vestido branco de seda pura, contrastando com sua pele morena e seus cabelos escuros. Por que ela não dançava como as outras moças?
Os rapazes circulavam ao seu redor tentando aproximar-se ou conversar um pouco. Apesar de responder educadamente, Juliana não os animava e logo, um pouco embaraçados, eles afastavam-se.
- Essa não casa tão cedo!- pensou Norma um pouco contrariada.
Seria bom se ela se casasse aos dezenove anos como Vera. Era uma idade ideal para começar uma família.
Alguns convidados aproximavam-se, e Norma voltou-se para eles, agradecendo satisfeita os elogios que recebia.
Vera estava linda e certamente todas as mães ali estariam invejando. Casar bem uma filha era o sonho de todas elas.
Juliana, olhando a irmã que dançava nos braços do marido, não sentia a mesma alegria da mãe. Não acreditava que Vera encontrasse a felicidade com essa união. Sentia que os dois eram almas diferentes e não estavam em sintonia.
Para ela, o casamento deveria ser uma fusão almas, uma união de espíritos.
Não sentira essa afinidade entre eles. Percebera que aquele casamento não saíra do convencional, onde cada um procurara representar o papel de acordo com os padrões sociais.
Onde ficavam os sentimentos mais verdadeiros e profundos? O que seria deles quando o verniz social não mais conseguisse contê-los?
Para Vera, Marcelinho era o moço mais bonito, rico bem vestido, formado, que lhe daria excelente posição social. Ser invejada, admirada, festejada, era o que Vera queria. Porém, Juliana sabia que em cada pessoa existe uma alma que tem suas próprias necessidades. O que seria dela quando sua alma exigisse seu espaço?
E Marcelinho? Quais as aspirações mais íntimas de seu espírito? Que sentimentos e necessidades se ocultavam atrás do jovem educado, impecavelmente vestido, requintado e discreto?
Juliana sentia que eles ainda não se conheciam de verdade. Estavam casando com os papéis que cada um representava perfeitamente dentro das regras do jogo.
O que seria deles quando se encontrassem frente a frente, alma com alma, na verdade do que cada um é? Seria um encontro ou uma separação?
- Um doce pelo seu pensamento.
Juliana, arrancada de seus pensamentos íntimos, olhou o rosto do rapaz em pé à sua frente e sorriu levemente.
- Sinto muito - disse. -Não o vi aproximar-se.
- Percebi que você estava longe. Pensava em alguém especial?
- Oh! Não. Pensava em minha irmã.
- Ela está feliz. Gostaria de estar no lugar dela?
- Eu? - sorriu de novo. - Não - disse com firmeza.
- Posso sentar-me?
- Claro.
Juliana conhecia o Armando há alguns anos. Desde que seu pai começara a trabalhar com o Dr. Morelli de quem ele era o único filho. Apesar disso, quase nunca ele lhe dera atenção. Mas a cumprimentava quando o acaso os reunia no hospital onde ele estagiava na medicina.
- Quer dizer que você não gostaria de se casar? - continuou ele sério.
- Não disse isso.
Armando sorriu com uma ponta de ironia.
- Eu sabia! Todas as mulheres pensam em se casar. Aliás é só o que ela pensam. É só conversar com uma garota que ela logo fala em namorar em casa, falar com os pais etc. Isso é até obsessão.
Juliana não respondeu. Ele que esperava uma reação enérgica, fixou-a curioso.
Ela não deixava transparecer nenhuma emoção.
- Você não reage?
Ela sorriu.
- Reagir a quê?
- Ao que eu disse sobre as mulheres.
Juliana sacudiu a cabeça.
- Não. Essa é a sua experiência. Deve ter motivos para dizer isso.
- E você, o que acha?
- Sobre o quê?
Armando olhou-a admirado novamente. Ela estaria se divertindo à sua custa? Mas o rosto de Juliana era atencioso e seu tom, educado.
- Sobre a vontade de casar que as mulheres têm.
- Por que se preocupa com isso? Você não é mulher.
- Mas elas são insistentes. Às vezes, incomodam.
- Os homens também. Costumam ser mais insistentes do que as mulheres.
- Estou sendo inoportuno?
- Não disse isso. Você falou da sua experiência, e eu falei da minha. Só isso...
- Você é muito bonita. Os homens devem se muito insistentes com você.
Juliana sorriu novamente.
- Algumas vezes.
- Você não disse o que pensava quando eu cheguei.
- Por que deveria dizer?
- Fiquei curioso.
- Pensamentos íntimos, coisas minhas, nada que pudesse interessá-lo.
- Estive observando. Vários rapazes tentaram conversar, você não lhes deu chance. Está apaixonada?
- Não. Ainda não.
- Isso quer dizer que é de carne e osso como os demais. Cheguei a pensar que fosse diferente.
Ela sacudiu os ombros e sorriu levemente ao responder.
- De onde tirou essa idéia? Neste mundo não existem duas pessoas iguais. Algum dia já encontrou alguém com seu rosto, seu porte, suas idéias?
Armando inquietou-se um pouco. Juliana estaria caçoando dele?
- Claro que não.
- Nesse caso, generalizar é ilusão. Deus é muito criativo, não se repete. Cada um é um.
- Você não gostou do que eu disse. Deseja por acaso ser especial?
- Desejo apenas ser eu.
- Posso saber como você é?
- Ainda estou me descobrindo.
- Se deixar, posso ajudar.
Juliana olhou-o nos olhos e disse: - terá condições de me ver?
Armando sentiu aumentar seu interesse. Olhando os olhos negros e profundos de Juliana, respondeu lentamente.
- Adoraria tentar.
- Obrigada pelo interesse. Mas esse é um trabalho meu.
- Vamos dançar?
- Lamento, não é o meu forte.
- Do que é que você gosta?
- De tudo.
- Menos dançar.
- Depende do momento.
- Já entendi. Depende da companhia.
- Também. Mas agora não é o caso. Gosto de dançar quando tenho vontade, quando a alma canta de felicidade e a energia cresce espontânea.
Os olhos dela brilhavam expressivos e Armando pensou: - Há mulheres que usam ardis para despertar o interesse. Juliana seria uma delas?
- Hoje é festa, sua irmã, seus pais estão felizes. Você não
Juliana olhou-o e não respondeu. Como dizer-lhe o que lhe ia no coração?
- Ele insistiu: - e então?
- Não tenho nada a dizer.
- Por que não responde?
- Por que não sinto vontade.
- Só faz o que sente vontade?
- Por certo.
Ele se irritou um pouco: - Parece uma menina mimada.
- Por q eu não faço o que você quer?
Ele desconcertou. Reconhecia que não conseguia manejá-la como fazia com as demais. Sorriu e mudou de tática.
- Está me chamando de dominador? Isso no homem é virtude. É preciso saber comandar.
- Eu não disse isso, foi você.
- Foi o que pareceu.
Juliana sorriu e não respondeu. Ela não facilitava as coisas. Tentou despertar mais interesse.
- O que você realmente gosta de fazer?
- De viver.
- Geralmente, na sua idade, viver é ter muita vida social. Não me parece seu caso.
Os olhos dela brilharam, e ela não respondeu. Ele continuou: - de novo generalizei. Esqueci que você é diferente. O que é viver para você?
Ela fixou-o firme nos olhos, observando-o por alguns instantes; depois respondeu:
- É sentir a força da vida dentro de mim. É perceber a presença de Deus vibrando em minha alma, nas pessoas, nas coisas, no universo inteiro. É ter consciência da realidade que se esconde atrás da aparência. É ver além dos cinco sentidos. É enxergar com os olhos da alma.
Os olhos dela brilhavam, e seu rosto adquirira um viço especial. Uma expressão de alegria que ele nunca vira. Comoveu-se.
- Você é muito bonita - disse por fim. - É muito jovem. Está começando sua vida social. É uma pena perder sua ingenuidade.
- Não me lastime. O que chama de minha ingenuidade pode ser sua capacidade de me ver.
- Num mundo tão cruel e cheio de dor, você logo mudará seu conceito de realidade. O sofrimento humano é inegável. Se visse o que eu vejo no hospital, concordaria. Se pensar que Deus existe, como não culpá-lo pela omissão? Essa idéia de que PE preciso sofrer muito para redimir-se, dá-me a visão de um Deus cruel e vingativo que eu me recuso a aceitar.
- Tem razão. Deus é amor. Mas eu sei que o sofrimento é uma ilusão que o tempo vai arrancar. Um dia o homem compreenderá que foi criado para a alegria, o amor, a felicidade, a beleza.
- Sinto, mas não posso concordar.
- Você observa a superfície, os sintomas, as inversões da ilusão. A vida é muito mais. Ainda é cedo. Um dia descobrirá sua própria força interior e começará a enxergar com a alma. Nesse dia, encontrará Deus.
- Você é religiosa, eu não.
- Engana-se. A opressão religiosa acovarda e reprime, mostrando um Deus humano, vingativo, que castiga e pune.
Ele ia retrucar, mas Clóvis aproximou-se com uma garota, interrompendo:
- Estamos com sede. Tem aí algo para beber?
Imediatamente Armando os convidou a sentar e enquanto se servia de refrigerante, Clóvis examinava disfarçadamente a irmã. Observara-os a distância, e ele temia aquele ar luminoso de Juliana. Teria tido alguma crise? Contudo, ela pareceu-lhe natural.
A conversar generalizou-se entre os três, Juliana, calada, ouvia-os. Armando estava natural. Preocupara-se sem razão. Reconhecia que Juliana era bonita. Claro que Armando se interessara.
A festa prosseguiu com todos os rituais da moda, até a fuga dos noivos. Juliana desejava ir para casa, mas foi forçada a esperar pelos pais.
Na volta, quase não prestou atenção ao que Norma dizia ao marido, alardeando a felicidade, a inteligência e a sorte de Vera. Sequer viu que ela lançara olhares furtivos na esperança de interessá-la a ser como a irmã.
Armando, voltando para casa com o pai, ia pensativo e calado. A certa altura indagou:
- Pai, o que você pensa de Juliana?
Morelli, sem desviar a vista da rua, dirigindo o carro, respondeu:
- Uma moça muito bonita.
- É verdade. Mas tem idéias um pouco diferentes das garotas da sua idade. Diz coisas inusitadas.
- Ela é introspectiva. Não gosta de falar muito.
- Estivemos conversando. Fiquei pensando se ela é assim mesmo ou está fazendo tipo. Sabe como é, as garotas gostam de fantasiar e copiar frases dos adultos.
- Não é o caso de Juliana. Se ela expôs seus pensamentos, você teve sorte. Eu já tentei conversar e não fui muito longe.
- Você? Por quê? Que interesse poderia ter em conversar com uma adolescente?
- Chegamos. Vamos entrar, e eu lhe contarei o que aconteceu.
Morelli guardou o carro e uma vez na sala de estar, sentaram-se no sofá, ele contou o estranho caso daquela paciente.
Armando ouviu surpreendido. Morelli concluiu:
- Temos que admitir, mesmo que Dagoberto se negue a isso, que algo estranho aconteceu.
Armando sacudiu a cabeça.
- Pai, deve haver uma explicação lógica para esse fato. Você pode ter se enganado. Tudo não passou de coincidência.
- Ninguém me convence disso. Eu estava lá quando ela desceu as escadas e entrou na sala. Ouvi suas palavras. Como ela poderia saber o que se passava no hospital?
- Dr. Dagoberto deve ter comentado e não se lembra.
- Sei. Mas como a D. Ofélia confirmou tudo? Descreveu a moça que a ajudou tal qual Juliana, que ela nunca virá, e falou do perseguidor. É coincidência demais para mim.
- Você está ficando supersticioso. Cuidado.
- Engano seu. Eu quero descobrir o que há de verdade nisso. Estou estudando o sonambulismo. Temos muito que aprender sobre esse assunto. A medicina sabe pouco a respeito.
- É um terreno escorregadio. Leva às ilusões de crendice popular. Morelli focou pensativo por alguns instantes, depois aduziu:
- Às vezes penso que crendice popular pode ter um fundo de verdade que um dia a ciência ainda vai explicar.
Armando sorriu e levantou-se dizendo:
- Há poucas coisas que ignoramos ainda, porém, a pretexto disso não vamos aceitar idéias dos ignorantes.
Morelli levantou-se por sua vez e sorriu também.
- Em todo caso. Você me perece muito interessado nas idéias de Juliana. Se descobrir alguma coisa, não deixe de me contar.
- Descobrir o quê?
- Não sei! O que ela sente nesse estado, se realmente não se recorda de nada ao acordar.
- Não penso em investigar essas coisas.
- Talvez, não. Mas quem sabe? O que ela não me disse, poderá dizer a você. Parece que conseguiu dela mais do que eu.
- Quem garante que voltarei a vê-la?
Morelli passou o braço pelos ombros do filho enquanto se encaminhavam para o pavimento superior.
- Alguma coisa em seus olhos , ou em sua voz, quando fala nela. Essa menina o impressionou.
- Está exagerando. Não nego que é bonita. Mas não sei se quero vê-la de novo.
Morelli sorriu.
- Seja como for, se acontecer, lembre-se do meu interesse.
Armando entrou no quarto e enquanto se preparava para dormir, o rosto iluminado de Juliana voltou-lhe à lembrança.
- "É ter consciência da realidade que se esconde atrás da aparência. É ver além dos cincos sentidos. É enxergar com os olhos da alma."
Sentiu de novo a mesma emoção indefinida. Sacudiu os ombros, tentando dominar-se. Teria ela compreensão do que dissera? Sentira mesmo a vida com tanta força? Era quase uma criança! Não seriam apenas frases de efeito? Novamente o rosto de Juliana acudiu-lhe à memória. Havia uma força especial e, sua voz. Estaria sendo sincera?
Passou a mão pelos cabelos como a afastar alguns pensamentos novos. Deitou-se e no escuro do quarto, pensou:
- E se a incapacidade de ver for só minha?
Nunca antes tivera essa idéia. Sabia que era inteligente, arguto, sempre fora considerado brilhante. Gabava-se de sua perspicácia e do seu raciocínio rápido.
- "Não me lastime. O que chama ingenuidade pode ser apenas sua incapacidade de ver."
Armando remexeu-se no leito. Realmente, ainda não conseguira vê-la. Várias vezes perguntara-se como ela era. Uma coisa era certa, ela não conhecia tanto sobre o comportamento humano como pensara. Não pensaria mais no assunto e pronto. Mas, apesar disso, custo a adormecer.
Uma vez em casa, Juliana recolheu-se satisfeita. Gostava do silêncio. Atirando a bolsa sobre uma cadeira, livrando-se dos sapatos, abriu a janela sem ruído, debruçando-se no parapeito, olhando lá embaixo a rua silenciosa. Depois, levantou os olhos para o céu onde as estrelas brilhavam.
Sentiu-se bem olhando o céu estrelado, dando assa, à imaginação.
O que existiria em cada estrela? Que seres habitariam a vastidão do universo? Que maravilhas haveria ocultas aos olhos humanos?
Sabia que já estivera em outros lugares antes de viver na Terra. Sentia por vezes saudade indefinida de afetos, de beleza, de alegria, que nem sempre conseguia vislumbrar em sua vida cotidiana.
Ah! Se eu pudesse dizer as pessoas o que sentia! Mostrar-lhes a grandeza da vida, a perfeição de tudo, a felicidade!
Entretanto, percebia que as pessoas que conhecia, incluindo sua família, tão empenhados em defender-se, acreditavam tanto nos perigos que eles criaram, que gastavam nisso todas as energias, mostrando-se incapazes de enxergar a simplicidade, a felicidade, a perfeição da vida.
Respirou fundo. Rapaz tão inteligente como o Armando, entrando no jogo social, de regras pré-estabelecidas para relação entre as pessoas.
Ele era atraente. Notara-lhe o interesse, mas ela era livre. Nunca entraria nas regras como Vera, cumprindo o ritual da boa moça da sociedade.
O homem que ela iria amar, deveria ser tão livre quanto ela, obedecendo apenas o que sentia no coração.
Fechou a janela e preparou-se para dormir. Sentia vontade de viajar em sonhos, ir rever lugares onde se sentia compreendida e amada. Acomodou-se no leito e docemente adormeceu.

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Pelas Portas do Coração - COMPLETO - ZIBIA GASPARETTOOnde histórias criam vida. Descubra agora